Amanhã,
Eu tinha onze anos quando participei de um ritual que me impressionou muito. Tanto, que me lembro com riqueza de detalhes, até hoje. A ocasião: velório da minha avó materna. Uma família com a cultura entranhada nos ritos católicos e uma multidão (minha avó era popular, por assim dizer) que ali estavam, foi o suficiente para um rito repleto de cantos e orações, nos quais as pessoas se conectaram e pareciam acessar uma outra dimensão, de forma coletiva.
Aos olhos de uma criança já com o pezinho na adolescência, aquilo foi, no mínimo, mágico. Uma forma totalmente diferente de se comunicar e relacionar a algo/alguém. Desde então, passei a gostar de rituais e vê-los como uma linguagem. Uma presença no mundo, capaz de nos apresentar outras faces da realidade, acrescentando nela, o fantástico que nos rodeia.
A primeira opção de curso grifado na minha ficha de inscrição do vestibular era jornalismo, a segunda, antropologia. Não sabia ao certo porque insistia nesta segunda opção, apenas continuava fazendo. Muitos carnavais depois, não sendo nem jornalista, nem antropóloga, desconfio da resolução deste enigma; meu encantamento reside nas diversas formas de linguagem, em tudo aquilo que é dito, nas entrelinhas, um universo que reside para além dos prados palavriais.
A literatura tem se colocado diante de mim como uma espécie de oráculo. As mensagens chegam. As palavras estão ali, mas o que ouço, está além do texto. Observo a amplitude da linguagem. É preciso dar espaço ao não convencional. O que um fungo pode me ensinar que nenhum filósofo seria capaz de fazer? Quem são os narradores que ditam o nosso pensar? Uma lagarta pode saber um bocado de coisas surpreendentes.
Tenho criado sonhos. Capítulos que transportam o leitor para um lugar real e ao mesmo tempo, fantástico. Ali, acontecem muitas coisas que não cabem na lógica convencional, mas que podem fazer muito sentido, se lidas, em suas lacunas, para além das margens, onde se escondem as outras linguagens vivas dentro da literatura.
Um, em especial, foi muito difícil de escrever, estava com dificuldade em acessar essas sutilezas, necessárias para que o texto se transforme em algo para além de um apanhado de palavras. Terminei na segunda. Guardei.
Na terça, ao reler, encontrei. A mensagem que, veja bem, não havia me atendado, cabia também aos que se envolvem com o trabalho todo. Chorei, pois não é todo dia que a literatura conversa com você, menos ainda pelas suas próprias mãos. Quem escreve precisa sempre lembrar de agradecer quando a literatura abre um diálogo. Isso geralmente se torna algo maior.
Tenho ritualizado muito a vida ultimamente. Talvez alguns não vejam sentido nisso tudo, diante do caos que se apresenta. Para mim, quanto mais perto do fim, mais motivos para firmar meus pés no chão e aprender um monte de coisas que ainda não sei.
Nisso, abro meus olhos e lá está ela, a literatura, me trazendo a carta do dia.
Com curiosidade e afeto,
Ana
Agora tem pequenos devaneios das Cartas para o amanhã aqui também.
Sempre abro um sorriso com essas edições.
Este ensaio da
foi de uma beleza….
Que lindo, Ana! Também sinto assim, um caminho de expansão, atravessa de tudo um pouco nesse corpo: passado, presente, futuro, emoções, memórias, rituais...um encanto!
"Tenho ritualizado muito a vida ultimamente. Talvez alguns não vejam sentido nisso tudo, diante do caos que se apresenta. Para mim, quanto mais perto do fim, mais motivos para firmar meus pés no chão e aprender um monte de coisas que ainda não sei."
muito bonito isso. difícil se manter aí, nesse lugar, e que bom que a gente se atenta pra isso.