Amanhã,
Semanas atrás fui à festa de aniversário de minha única amiga de infância. Digo única não porque tenha tido apenas ela como amiga, mas por ser a que restou. Fizemos as contas, 29 anos de amizade. O número me assustou, ao pensarmos em relações interpessoais a contagem do tempo parece seguir outro padrão. Os anos significam mais do que anos, sinto que são medidos pelas mudanças internas e externas de cada uma.
Enquanto lembrávamos do início da nossa amizade, não pude deixar de pensar em Lila e Linu, duas garotinhas andando pelas ruas de Napoli com um livro embaixo dos braços. Nós duas circulávamos a escola como irmãs siamesas, mas ao contrário delas, minha amiga nunca foi muito fã dos meus universos literários, então os livros, carregava apenas eu.
Já me questionei algumas vezes, principalmente mais nova, sobre o que fazia nossa amizade se manter. Nunca fomos muito parecidas e a vida adulta deixou isso muito claro. Havia aí um incomodo, cheguei a pensar que talvez eu tivesse tamanho apego pelo passado, que não era capaz de me desvencilhar dos maiores elos que me ligavam a ele.
Mas a vida adulta é mais do que dores nas costas e rugas, ela nos direciona a certos entendimentos que só o tempo é capaz de proporcionar. Desde meu divórcio, me vi voltada para as amizades, em especial as femininas, e foi neste momento que meu olhar para este tipo de relação deu aquela virada de chave e passei a observar os comportamentos mais a fundo.
Não à toa, me tornei mais fã do que já era de Elena Ferrante. Desconheço alguém que descreva melhor as relações de amizade entre mulheres. Na minha humilde opinião, Ferrante nos humaniza e acessa as camadas diversas que podem conter uma amizade entre mulheres.
“(...) Sei que, muito mais do que os três primeiros, no centro deles está a narração das mulheres. Se, nos outros textos, as protagonistas escreviam sobre si mesmas – escreviam autobiografias, diários, confissões, impulsionadas por suas feridas ocultas -, agora que o eu narrador tem amigas, o esforço não é mais escrever para si sobre as interações com o mundo, mas narrar as outras, ser por elas narrada, em um jogo complexo de identificação e alheamento”. (Trecho do livro A margem e o ditado)
São muitas as possibilidades de narrativas em nossas relações entre amigas. Sim, talvez esta amizade de 29 anos se paute na nostalgia. É possível que a linha que nos conecte hoje seja o passado, aquilo que lembramos que um dia fomos. Mas é ela também que mantém a leitura que cada uma faz de si e da outra, alimentando a vontade de nos vermos novamente e nos encontrarmos com nossas novas versões através da visão alheia.
Amizades femininas em determinada fase da vida ultrapassam os estereótipos de amigas. Tenho uma grande amiga que pouco sei sobre suas questões emocionais, assim como ela pouco sabe sobre as minhas. Trocamos mensagens regularmente que se pautam basicamente em “assuntos chatos da vida adulta”, o clássico compartilhamento de promoções e cupons de desconto, memes que só a gente entende e rolês previamente agendados com o intuito de nos vermos sem dar trabalho extra para ninguém. Trocamos presentes úteis, estamos sempre nos ajudando e embora o tempo entre nós seja breve, há um grande afeto e companheirismo latente na nossa amizade.
Não tenho uma amiga sequer com quem falo todos os dias. Não mais. O tempo me mostrou que estar disponível para alguém não requer demonstração constante. Isso não impede que o clássico “oi amiga, como você está? ” ocorra. Eu sou do tipo que passa dar um oi com frequência, mas deixei de cobrar que façam o mesmo e principalmente, deixei de me cobrar, caso não seja o momento para mim. Não é pessoal (quase nunca é). Amizades são espaços, nos quais existimos com mais ou menos intimidade, mas não existem para serem uma prisão.
Quando penso nessa liberdade que as amizades femininas são para mim hoje, lembro de Simone de Beauvoir e Élisabeth Lacoin. Em seu livro As inseparáveis, Simone narra através de seus alter egos, o surgimento de uma amizade cheia de percalços (para dizer o mínimo) e ao mesmo tempo, uma grande força motriz que se formava entre elas, as tornando, inseparáveis.
“Se tenho esta noite os olhos cheios de lágrimas, é por que você morreu ou por que estou viva? Deveria dedicar essa história a você, mas sei que já não está em nenhum lugar, e se me dirijo a você aqui, é como um artifício literário. Além disso, essa não é sua história de verdade, e sim uma história baseada em nós duas. Você não era Andrée e eu não sou essa Sylvie que fala em meu nome”.
Desconheço força maior do que o apoio mútuo entre mulheres que se querem bem. São poucas amigas que leem o que escrevo. Isso já foi uma grande questão para mim. Hoje entendo que, a escrita é meu trabalho e eu não sou entendedora do trabalho de todas as minhas amigas, porque exigiria que fossem elas do meu? Porém, afirmo que, se eu precisar do apoio delas, estarão todas ao meu lado.
“Se tem alguém no mundo que pode me dar coragem e esperança, é você. Pelo simples fato de ser quem você é e de pensar como você pensa. ”
Esta frase acima é um pequeno trecho de uma das cartas enviada pela escritora argentina Victoria Ocampo para Virginia Woolf em 1934, faz parte da seleção inserida no livro Correspondências. As duas autoras se correspondiam em uma época em que ser escritora e mulher era extremamente desafiador (mais do que hoje, no caso). Mulheres se apoiando mutuamente na escrita é uma das coisas mais bonitas que já tive a oportunidade de vivenciar.
bell hooks é a deusa quando o tema é amizade entre mulheres. Em Tudo sobre o amor ela discorre sobre as tantas possibilidades dentro de uma relação de amigas, inclusive acho belíssimo ela as nomear de amizades amorosas.
“Amizades amorosas nos dão espaço para experimentarmos a alegria da comunidade num relacionamento em que aprendemos a processar todos os nossos problemas, a lidar com diferenças e conflitos enquanto nos mantemos vinculados. ”
Ela não diferencia as relações. O amor de um casal e o amor entre amigas não possui hierarquia aos seus olhos. Esse tema me ronda a bastante tempo e provavelmente logo escrevo sobre isso. Já pensou se pudéssemos escolher os pesos que damos nas relações, sejam elas parentais ou não? Qual nível de envolvimento teríamos com nossas amigas se fosse possível inseri-las no rol de afetos da forma como bem entendêssemos?
Em sua outra obra, Comunhão – a busca das mulheres pelo amor – bell nos diz que “Amizades longas e profundas são o lugar onde muitas mulheres conhecem o amor duradouro”. Neste mesmo livro hooks discorre sobre um de seus amores mais genuínos e profundos da vida toda: sua melhor amiga.
“É nas amizades que muitas mulheres vão conhecer também a admiração, a gentileza, a não violência, o reconhecimento. Nem é preciso ser uma amiga íntima para que o vínculo se estabeleça a partir de um real desejo de estimular e apoiar a outra”.
Tenho amigas que fico meses sem falar e quando nos encontramos isso não parece ter a menor importância. Amigas que tomo café regularmente, seja virtual ou olho no olho e é tanto assunto, que um café por mês é bem pouco. Tenho amiga que responde mensagem com atenção, outras que respondem semanas depois. Amigas que os encontros se pautam em “cada uma cuida para levar a criança inteira embora” e a conversa se resume em oi e tchau. Amigas que olham para o meu trabalho de forma tão generosa e sincera, que dificilmente saio de nossas conversas com os olhos intactos.
Falar sobre amizades femininas é falar também sobre pertencimento. Amor, nas suas mais diversas versões. Trago a literatura como meu suporte pois desconheço ferramenta mais eficaz. O apoio entre mulheres amigas é algo que transcende o explicável. Há aí forças que vão além do entendimento, mas perfeitamente capazes de serem sentidas.
Ferrante não fala apenas das ambivalências na amizade de Lila e Lenu, mas de complemento. Ambas se apoiam uma na outra, seja nas qualidades ou defeitos. Há ali companheirismo e sororidade, mesmo que de forma bem tortuosa, ou seja, do jeitinho que é na vida real. As amizades femininas não são perfeitas, porém são capazes de criar mundos onde a vida é bem boa de se viver.
Às mulheres, desejo sempre amizades amorosas e acolhedoras.
Com curiosidade e afeto,
Ana
Textos de vizinhas substackrs que gostei bastante:
Não conheço Fortaleza, mas queria muito depois deste texto da
Certidão (de nascimento) (paywall) da talentosíssima
Fé em nós (sempre) da poeta
Um assunto delicado entre artistas da
É sempre tempo de uma manhã de sol da
"Hoje entendo que, a escrita é meu trabalho e eu não sou entendedora do trabalho de todas as minhas amigas, porque exigiria que fossem elas do meu? Porém, afirmo que, se eu precisar do apoio delas, estarão todas ao meu lado". Isso aqui é tão lindo S2.
Muito obrigada por me mencionar, Ana!!!
Se um dia vier por Fortaleza, me avise! haha
escreve, ler e consumir conteúdos de mulheres 🩷