Amanhã,
Estou sentada na cadeira de acompanhante de um hospital aguardando o procedimento cirúrgico da minha filha. Esta informação aparentemente irrelevante integra à carta como recado para mim mesma: A escrita resiste na adversidade.
Na busca por elementos que me conectem a criatividade, tento segurar com as mãos as palavras que escorrem pelos dedos.
Já dizia Manoel de Barros:
Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo
que catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.
(...)
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
‘
Escrever como subversão. A existência de algo que vá além de nascer --------- morrer. O entre. O que fazemos nele? Pagar boletos, tão somente, me parece um desperdício de moléculas e oxigênio. Um planeta tão cheio. De desperdícios. E boletos.
Criar enquanto mantém o corpo, a casa, o céu interno, aberto e azul. Os boletos. Estão aí também. Invadem sua arte, lhe fazem sentir que suas palavras só possuem valor se recebem uma recompensa cifrada. Uma armadilha tão bem construída que só não cai quem acha que não caiu.
A literatura não me deve nada. Repito para não esquecer. O capital ri da minha cara, pois ele quer seu pagamento, quer alguém me deva algo ou não, o pagamento dele tem dia e hora marcada. Dane-se. Crie sua arte, não cobre por ela. Pague os boletos. Regras são regras.
Escrevo. Escrevo. Enquanto penso se deveria realmente estar escrevendo. As circunstâncias transformam o valor da sua arte. Qual a relevância das minhas palavras? Me questiono enquanto minhas células envelhecem e faço uso de mais um tanto de oxigênio. Desperdício?
E deveria existir razão? Será por isso que alegam a loucura como componente da arte? Pessoas que se refugiam no criar, distanciando-se da lógica e muitas vezes do real. “Tão sonhadora, vive em Nárnia é?” Dizem nos meus ouvidos. O PIB aumentou, os juros subiram. O mercado financeiro está uma loucura. O mercado de comida, também. As palavras flutuam, dançam dentro da norma e com sorte, fogem, se escondem na cabeça do artista, transformando-se em algo novo que, ao chegar diante dos olhos daqueles que vivem com suas moléculas cada vez mais envelhecidas, respirando o tal oxigênio, explodem, em expansão.
A arte leva o tão insignificante ser superior do planeta terra a um patamar de contemplação. Alguns lapsos de sentido da existência se apresentam. Os músculos se agitam e fazem o movimento. É possível sorrir. Ver beleza naquilo que nasce da vontade de ser, no entre, nos intervalos entre o abrir os olhos e fecha-los, para sempre.
Alguns criam. Outros também. Uma parcela assume o risco de viver criando. Em um mundo feito para vender e comprar. “Esse remédio aqui tem que comprar tá!”, disse a atendente da farmácia ao entregar os itens pós operatório da minha filha. Sim, compremos. O oxigênio é de graça, ter espaço para usufruí-lo, não. A escrita resiste na adversidade. Repito. Para mim e para os muitos que na certa entendem na pele o que esta frase quer dizer.
Me perdoe a melancolia amanhã, há de se ter certa reflexão dentro da persistência. A arte nasce também do contraditório. Observações feitas de um mundo caótico no qual o asco por certas estruturas se cria e perpetua, ao passo que a escrita desabrocha, feito mato que nasce depois de tanto veneno, cria da subversão, brota e cresce, mesmo quando dizem que não deve, que ali não é seu lugar. A palavra se faz presente na necessidade, não na conveniência. Acalenta, só depois de bater.
O que dizer aos que fazem essa travessia da palavra possível? Aos tantos traseiros sentados na cadeira, prontos para transformar o real e o abstrato em algo capaz de comunicar o entre. O espaço que transitamos, mas nem sempre pisamos os pés. O que dizer aos que fazem da sua vida, uma linha, o fio condutor entre a palavra e outro. A conexão direta com a senhora palavra, dona de tudo aquilo que existe. Pois só existe aquilo que somos capazes de nomear.
A eles, eu digo.
Ser a linha que conduz tudo aquilo que leva consigo um nome é carregar dentro de si um mundo. Muitas vezes difícil demais de se carregar. Porém, ainda um mundo, vasto e profundo. Tão grande a ponto de preencher o nosso entre de olhares e nomeações que só chegam diante da entrega e do mergulho.
A escrita resiste na adversidade, repito. E aos que resistem, junto com ela, o meu sincero abraço.
Com curiosidade e afeto,
Ana.
****
Inscreva-se no ciclo de leituras do Dialeto Materno utilizando o cupom de desconto NEWSLETTER.
O conflito que atravessa meu corpo diariamente. Mas, ainda, sinto que há linguagens e formas para além das palavras…e isso me faz silenciar. Talvez, esse seja mais um dos conflitos…escrevamos 🌊
Que lindo texto, Ana!
Há que resistir. Sigamos.