Aprendi que o silêncio é um remédio tarja preta #93
Te ajuda a sobreviver, mas não irá fazer nada além disso por você.
Amanhã,
Estou aqui ensaiando um assunto faz um tempo. Escrevi, apaguei, umas dez vezes. Alguns temas borbulham dentro de mim, mas parecem custar tempo para achar o caminho das palavras. Resolvi tentar mesmo assim, quem sabe colocando no papel as poucas palavras que tenho, as demais se dão por convencidas e se juntam neste emaranhado aqui.
O tema é o silêncio. Especificamente aquele que mora nas relações familiares intergeracionais. Que se coloca como uma barreira, entre o que deve ou não ser dito. A literatura explora lindamente esta realidade: Mulheres que não falam sobre suas dores com a fiel crença de que isto irá por fazê-las desistir de doer. Vanessa Passos em A filha primitiva explora este terreno de forma profunda, colocando no centro da trama o que não é dito, levando o leitor a prévia conclusão de que a história é dolorosa, digna de não ser contada e guardada a sete chaves no baú das coisas que não se deve narrar.
A identificação acontece. A literatura explora o que reside no real, as filhas primitivas facilmente se transformam em mim e você pois o silêncio do que não deve ser dito habita todas as famílias, numa espécie de pacto em prol da sobrevivência do bem-estar. Não à toa terapia é ainda vista como lugar de quem está doente e “tem tempo para frescuras”. Não faz parte de políticas públicas de saúde mental e, portanto, inacessível para grande maioria da população.
O silêncio se torna um remédio. Falar sobre nossas dores é um processo bastante doloroso, relembrar fatos e falar sobre seus sentimentos em relação a vivências traumáticas pode ser quase que literalmente, sufocante. Tenho por mim que deixar tudo isso morar dentro da gente é muito pior, mas só cheguei a esta conclusão depois de muita terapia. Aprendi que o silêncio é um remédio tarja preta, te ajuda a sobreviver, mas não irá fazer nada além disso por você.
Fico pensando em como seriam as relações familiares se o pacto do silêncio ali não residisse. Conhecer os caminhos trilhados pelas minhas antepassadas sem uma placa de proibido em determinados períodos. Humaniza-las através de suas histórias. Aprender que nem só de causos bonitos se constrói a estrada da vida. Entrelaçar vivências a partir desta troca. Revolucionar os afetos. Sim, relações mudam quando se é permitido ser em sua inteireza. Mesmo que pareça que ali não há nada além de dor, é uma história, capaz de caber um mundo todo dentro.
Quero contar a minha para minha filha. Me recuso a este tabu. Me recuso usar o silêncio como proteção. Ele nunca me protegeu das minhas dores, só me fez sofrer sozinha. Algumas certamente terei que esperar uma idade adequada para isto, mas quero conta-las, olhando em seus olhos e mostrando que minhas dores não me definem, mas fazem parte de mim e não há nisto vergonha alguma.
A vida é para mim um mistério dos mais intrigantes e inspiradores e a história de cada um é sem dúvida o que mais me move como pessoa e principalmente como alguém que necessita das palavras para ser parte deste todo. Não cabe o silêncio amanhã, histórias são histórias. Eu quero conta-las, eu quero ouvi-las e de alguma forma, sentir na pele que eu vivi. Eu estive aqui, com meus passos, ouvindo muitos outros. E eu quero poder provar.
Com curiosidade e afeto,
Ana.
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Li recentemente o livro A vida mentirosa dos adultos (vi a série tb, na Netflix), e acho que pode te interessar... Vai um pouco nessa linha, das mentiras, segredos e silêncios familiares.
Dia desses eu e minhas irmãs quebramos o silêncio e contamos umas para as outras coisas do nosso passado familiar que nos feriram, e estão em processo de cicatrização. Algumas dessas coisas faziam com que no passado fossemos distantes, mas hoje nos unem. Não vamos revelar isso para as pessoas da nossa família que causaram isso, pelo menos por enquanto, mas eu me senti leve porque sei que estamos juntas e ler seu texto me deu a certeza que isso é importante.
"minhas dores não me definem, mas fazem parte de mim e não há nisto vergonha alguma." É isso! ❤️