Cartas para o amanhã

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As linhas que costuraram tudo isso #104

anamargonato.substack.com

As linhas que costuraram tudo isso #104

Foram elas, as palavras.

Ana Margonato
Feb 16
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As linhas que costuraram tudo isso #104

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Arte Carol Nazatto retirada do site www.valkirias.com.br

Amanhã,

Como tapar os buracos na grande colcha de retalhos da vida?

Esta foi a pergunta que fiz a uma amiga psicóloga, que ouve sobre as tantas lacunas que vão surgindo na vida das pessoas a mais de vinte anos.

Não tapa Ana. Não tapa.

Foi sua resposta, diante dos grandes buracos que lhe apresentava ali, em um momento de vulnerabilidade e acolhimento.

Minha teimosia por vezes me irrita, confesso. Mas não me dei por contente com a resposta. Como viver parecendo um painel de tiro ao alvo? Não seria mesmo possível, de alguma forma, tapar os buracos que vão surgindo nas relações mais profundas?

Ok, tapar talvez não seja realmente possível. Uma vez criado aquele espaço, para aquela relação, não há substituição. Buracos deixam sua marca, recados espalhados pela estrada que já pisou e muitas vezes ainda grudados na pele, caminhando junto com você agora.

Mas a estrada muda todos os dias. Novas conexões se formam e por mais que tais buracos permaneçam abertos, muitas vezes em carne viva, existem sempre a possibilidade de remendos.

Pensar sobre isso me fez lembrar das palavras de Scholastique Mukasonga em seu livro A mulher de pés descalços, uma autobiografia que narra sua infância em Ruanda e principalmente as memórias que possui da mãe, brutalmente assassinada no massacre ocorrido em 1994. Os buracos que lhe habitam e as formas que encontrou de tecer sob eles uma camada de significado e porque não, consolo.

“...Mamãe olhava para gente como se ela fosse partir por um longo tempo, como se ela, que raramente saía do terreno de casa e que nunca se afastava da plantação, exceto aos domingos para a missa, como se ela estivesse se preparando para uma longa viagem, como se fosse a última vez que visse as três ao redor dela. E nos dizia com uma voz que parecia vinda de outro mundo e que nos enchia de angústia: “Quando eu morrer, quando vocês perceberem que eu morri, cubram meu corpo, não se pode deixar ver o corpo de uma mãe. Vocês, que são minhas filhas, têm a obrigação de cobri-lo, cabe somente a vocês fazer isso.....”

“....Não cobri o corpo da minha mãe com o seu pano. Não havia ninguém lá para cobri-lo. Os assassinos puderam ficar um bom tempo diante do cadáver mutilado por facões. As hienas e os cachorros, embriagados de sangue humano, alimentaram-se com a carne dela....”

“....Mãezinha, eu não estava lá para cobrir o seu corpo, e tenho apenas palavras – palavras de uma língua que você não entendia – para realizar aquilo que você me pediu. E estou sozinha com minhas pobres palavras e com minhas frases, na página do caderno, tecendo e retecendo a mortalha do seu corpo ausente”.

O trecho é longo, eu sei. Num misto de empatia com inspiração, me emocionei com as mais diversas formas que Scholastique encontrou para lidar com tanta dor, tantas crateras feitas em sua colcha de retalhos da vida. Fez da memória tecido forte, capaz de criar camadas, que viram tecido. E as palavras, foram as linhas que costuraram tudo isso.

Encontrei ali aconchego e de certa forma a resposta que meu coração inquieto tanto procurava.

Tenho muitos buracos. Mas as palavras me acompanham. Uma agulha que se afia a cada dia, esperando os tecidos que formam, expandindo a colcha, criando novos formatos e cores.

E não é que tem que ficado bonita?

Com curiosidade e afeto,

Ana.

****

Última semana para se inscrever no Dialeto Materno na modalidade semestral. Semana que vem nos encontramos para falar de Blue Nights da Joan Didion, um livro de tirar o fôlego para começar este ciclo que está uma belezura só. Vem com a gente!

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Se você é de Jaguariúna e região, vem participar desta oficina presencial que irei ministrar em parceria com a Beatriz Lopes. Teremos meditação, conversa boa e claro, muita escrita.

Maiores informações, manda um oi neste e-mail.

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2 Comments
Roseane Aguirra
Writes Entrelinhas
Feb 16Liked by Ana Margonato

Belas palavras. Estou caminhando com alguns buracos em carne viva, mas seguindo, esperando que a nova estrada faça remendos gentis.... Como dizia Clarice em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres: "Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente". Fui buscar a frase completa, porque ela merece. <3

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1 reply by Ana Margonato
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