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Amanhã,
São 7:40hs da manhã de uma quinta-feira qualquer. Gostaria de ter lhe escrito ontem, esta carta já estar em suas mãos a esta hora, mas estava com um péssimo humor e sono, muito sono, por isso achei por bem adiar notícias minhas.
Enquanto lhe escrevo ouço ao fundo o som do filme dos Minions vindo da sala em contraponto ao choro de uma criança passando na rua com sua mãe, que argumenta a necessidade de ela ir para a escola. Ouço também o som da panela de pressão que já a esta hora faz o seu trabalho, cozinhando grão de bico para o almoço. Seu ritmo se alinha ao canto das maritacas, que animadas pelo novo dia se agitam no forro do bloco vizinho.
As trivialidades da vida são magnéticas. Me atraio por tudo aquilo que parece não conter valor algum.
Estou em total desalinho com o mundo, constato. Enquanto as vidas são cada vez mais editadas e filtradas nos grandes palcos dos deuses modernos, me sinto cada vez mais impelida a sucumbir ao meu grande desejo: Ser eu mesma.
Virginia Wolf, a mulher que sabia das coisas, diz “Se você não contar a verdade sobre si mesmo, você não pode contar a verdade sobre as outras pessoas”.
A verdade sobre mim, há Virginia. Eu sou uma aquariana que nasceu numa quarta-feira de cinzas, mas que não aceita esta verdade e se diz alguém que nasceu numa terça-feira de carnaval, quando tudo ainda era festa.
Meu registro, 11 de fevereiro de 1986. De um lado, meu pai, totalmente atribulado pelo nascimento de sua terceira filha, a primeira que ele teve que pagar pelo parto (coisa não muito bem vista na classe social lá de baixo). Do outro, minha mãe, lidando com o fato de que a filha nasceu com quase seis quilos, “gigante” para os parâmetros do hospital, o que gerou uma enorme fila de pessoas que queriam comprovar o fato. Dizem por aí que até saí no jornal da cidade, mas nunca tive provas concretas de tal feito.
Um nascimento conturbado, por assim dizer. Este foi o argumento usado pelos meus pais para justificarem que meu registro foi feito na data errada. Nasci mesmo foi no dia 12, quando a festa já havia acabado e estavam todos voltando-se para suas próprias nuvens acinzentadas. Decidi ocultar este “pequeno detalhe” na minha história e, para todos efeitos eu comemoro meu aniversário na data inserida no meu documento e me considero uma carnavalesca da vida.
Se Virginia olhasse para isso tudo certamente diria “Assuma o cinza que lhe habita, literalmente, desde o dia em que nasceu”. Quem é a Ana que nasceu numa quarta-feira de cinzas, o dia em que festa é proibido?
Estou assistindo Deuses americanos (sim, eu sou aquela que chega no bloco depois que o bloco já passou faz tempo) e entre Deuses antigos e Modernos, detesto todos. Mas também não sou ingênua, pois sei que faço parte do culto de muitos deles, mesmo que não admita isso em público.
Contar a verdade sobre si mesma. Este tem sido meu chamado já faz um tempo. Você também ouve essa voz? Ela fala comigo de formas muito peculiares. A mais comum é, um sentimento de inadequação que inunda o corpo, chega na alma, e de lá entra no peito feito raio e não sussurra, grita: “ASSUMA A SUA VERDADE”.
Admitir que vim ao mundo numa quarta-feira de cinzas e que é no meu nublado que encontro hoje as maiores inspirações de escrita, pode ser um bom começo. Gosto de contemplar o nascer do sol, as luzes avermelhadas iluminam algo em mim, da mesma forma que o silêncio deste momento me remete à solitude, e isso também é bom.
O que seria o nublado senão o entre, do sol e a tempestade.
Com curiosidade e afeto,
Ana
PS: Me mande mensagem de feliz aniversário. Dia 11 ou dia 12, você escolhe.
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Dentre várias oficinas que dou, quis começar o ano com Os nós da escrita.
Muita escrita do começo ao fim e agora com algo muito pedido por quem já fez oficina comigo: Devolutiva de texto.
O que diz quem já fez:
Assumir nossas verdades é difícil e assustador, mas a vista do outro lado é tão mais bonita... Vale a pena! Feliz aniversário atrasado, Ana!
Viva você, essa Fênix do entre! 💜