Cartas para o amanhã - Hoje a horta fechou #11

Amanhã,
Estou lhe escrevendo esta carta no dia 21 de março de 2021, no final de uma tarde quente de domingo. Especifico a data para que eu possa me lembrar de que foi hoje o dia em que recebi a notícia da perda de uma pessoa querida pelo Covid, talvez eu seja uma privilegiada, você já deve ter recebido cartas de pessoas que sofreram perdas a mais de um ano e que ainda tentam estancar a dor que jorra do peito, talvez eu seja, mas diante de tanta dor e lágrimas contidas, eu não me vejo de tal forma.
Não era uma pessoa a qual eu tinha intimidade, mas falávamos sobre frutas e flores com frequência, queria muito uma muda de orvalha, uma fruta difícil de encontrar, me disse uma vez. Pedi para minha mãe fazer uma muda pra ela. Esqueci de trazer comigo na única vez que à visitei em 2020, avisei que traria na próxima vez que fosse, o que provavelmente sabíamos ambas que não seria tão breve, mas não imaginávamos que a espera seria longa a ponto de ser tarde demais.
Dona Leonor era uma senhora peculiar, não tinha nenhum melindre, já ia pegando as verduras e temperos solicitados sem muito papo, conversando enquanto trabalhava. Quando a conheci, sempre me ofereço ovos e eu educadamente respondia que não os comia. Ofereceu mais ou menos umas cinco vezes até que decorou que eu não os compraria, quando ligava para encomendar minhas verduras dizia “a menina que não come ovos né”, eu adorava esse seu jeito e logo conquistou meu coração.
Seu método de definir quantidade de verduras era o máximo, dizia, “maço pequeno ou grande”, na primeira vez que comprei e não sabia bem o que isso queria dizer, saí pedindo tudo grande, o que resultou em verduras para uns 15 dias ( risos). Dona Leonor gostava de abundância, toda vez que pedia lições de limão, abacate ou qualquer outra fruta, sempre colocava como brinde, como se fosse um ultraje comprar tão pouco assim.
Os pedidos de verduras adiantados via telefone era meramente simbólicos, ela não anotava, “guardava na cabeça”, como sempre dizia, chegava lá para buscar meu pedido e geralmente de uma amiga que também havia sido conquistada e me dizia “o que é mesmo que você quer? ”. Quando era o pedido da amiga então, que eu não fazia ideia do que era, saía adivinhando e com itens frequência eram trocados, nos divertíamos quando chegava com um “pedido surpresa” para entregar.
Quando o Covid se fez presente, temi por ela e o marido, que atendiam um público constante, cheguei falar várias vezes para tomar cuidado, me dizia que estava tomando, colocaram uma barreira de distância, usavam equipamentos de proteção, tudo que era possível dentro das possibilidade, mesmo sabendo que todas essas medidas não eram garantia de segurança, acreditei que estava bem, é isso que nossa mente projeta quando tememos por alguém que não podemos proteger, acreditamos estar tudo bem, mesmo sabendo que não está.
Fiquei bastante tempo ser ir lá, pela minha segurança e a dela, os trajetos se fizeram mais breves nesse último ano e nem sempre me permito estar em locais que me fazem sentir-me a vontade, a alerta que hoje me habita me diz não ser uma boa opção. Tento recordar à última vez que nos vimos, mas não consigo. Minha memória não me permite tal momento. Recordo apenas de tê-la redes que as mudinhas de orvalha já estavam grandes e ela sorriu. Isso é tudo que me recordo.
Faço desta carta uma singela homenagem, não apenas para mais uma vítima de Covid, mas para Dona Leonor, uma das vítimas do Covid, um vírus que, embora seja uma doença infecciosa, propaga-se desenfreadamente pelo mundo e principalmente pelo Brasil, por motivos políticos e econômicos, sendo, portanto, a morte de muitos de pessoas resultado da estrutura econômica em que vivemos, na qual o capital e interesses políticos são mais importantes que a vida dos seres humanos.
Enquanto escrevo essa carta, recebi a notícia de que seu marido, o “vovô véinho” como era carinhosamente chamado pela minha filha, também se foi, menos de 24 horas depois de sua companheira de quase uma vida, vítima desse mesmo vírus, ou de genocídio, dificil diferenciar, pois é praticamente a mesma coisa.
Não tenho mais palavras que descrevem a dor que tudo isso representa, muito menos que ser acalanto, por isso, encerro essa carta história, com tom de desabafo e saudade. Vocês não serão apenas números em uma tabela, assim eu acredito e espero.
Com dor, revolta e esperança.
Ana,
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