Cartas para o amanhã

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Cartas para o amanhã - O dia que deixei de ser útil # 15

anamargonato.substack.com

Cartas para o amanhã - O dia que deixei de ser útil # 15

Ana Margonato
Apr 22, 2021
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Cartas para o amanhã - O dia que deixei de ser útil # 15

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Amanhã,

Sabe quando você sente que é uma questão de sobrevivência diminuir o ritmo? Aquela fase que você tenta equilibrar todos os pratinhos mesmo sendo bem óbvio que não tem braços suficientes para isso. Pois bem, isso já me ocorreu muitas vezes na vida, muitas mesmo, sempre fui aquela que tenta dar conta de tudo, coloca prioridades alheias à frente das minhas ou transforma tudo em prioridade e mudar o olhar e a postura nisso tudo levou bastante tempo e eu diria que provavelmente será algo trabalhado durante a vida toda.

Estava em um ritmo que queria fazer minha escrita matinal, mas também me exercitar antes do café da manhã, tomar café com a família, dar atenção para a filha, as dogs, cuidar da casa, das roupas, do supermercado, da alimentação com no mínimo quatro cores no prato, TV  dentro do limite de tempo indicado por cientistas que querem o bem das nossas crianças, brincar de várias atividades que estimulam o cérebro , organizar o jantar tão nutritivo quanto o almoço, fazer minha corrida ao final do dia e ainda cumprir o horário da rotina de sono da criança.

Não precisa ser muito gênio para olhar essa lista e ver que tem muita coisa para pouca gente. Mas eu estava seguindo essa lista aí há meses e advinha, algumas coisas começaram a falhar, porque é isso, se não cuidamos do nosso limite, o corpo nos avisa que ele já extrapolou e, ao contrário de quando fazemos escolhas das prioridades com consciência do que faz mais sentido naquele momento e bancamos as decisões, quando o corpo age, ele não nos permite escolher, ele nos tira aquilo que entende ser mais essencial para manutenção da existência sem aviso prévio e meu corpo resolveu que naquele momento era a minha criatividade e inspiração.

Fiquei semanas tentando apanhar as migalhas de criatividade e inspiração que hora ou outra surgiam, sentava para escrever e por várias vezes dormi sentada, literalmente. Quando uma ideia surgia, corria logo escrever o tema para me lembrar quando tivesse tempo, mas quando essa hora chegava, simplesmente não saía uma palavra, era como se tivesse sido abduzida e minha inspiração e criatividade fossem  itens que resolveram que eu não teria mais. Isso estava me deixando bastante ansiosa e deprimida até que, um dia vi aleatoriamente um vídeo de uma escritora dizendo como nossa criatividade está conectada com o nosso corpo e que, é preciso movimento para que ela flua.

Não fazia sentido, eu já estava movimentando ele pela manhã e final do dia, não podia ser isso pensei, mas ai observei que estava me exercitando porque é algo que realmente gosto de fazer, mas estava fazendo isso mesmo me sentindo extremamente exausta e entendi que precisava fazer o caminho inverso. Às vezes é preciso pausar para que o corpo sinta o movimento como algo bom e foi isso que fiz. Tirei o final de semana todo para descansar e segui um ritmo parecido durante a semana, não me forcei a escrever, apenas segui o fluxo e, depois de aproximadamente uma semana respeitando meu corpo senti minha vitalidade retornando e junto com ela a inspiração e a criatividade.

Você deve estar pensando o que tem de novidade nessa história não é mesmo amanhã? Provavelmente recebe muitas cartas de pessoas que lhe contam que aprenderam a pausar e descansar. Eu já havia feito esse movimento antes, mas usava isso como se estivesse recarregando a bateria, uma pausa com propósito, recarregar para depois retomar as funções a todo vapor, afinal, apenas existimos na sociedade capitalista se estamos produzindo e, mesmo que a gente não concorde com essa regra, ela nos domina muito mais do que somos capazes de perceber.

Desde o momento em que nascemos somos inseridos nesse sistema que funciona desta forma, se você produz, tem valor, do contrário, é alguém com, no mínimo, menos direitos que os demais, as crianças que o digam não é mesmo? Elas definitivamente não são respeitadas como um adulto, já havia se questionado por quê? Simplesmente porque elas não geram lucro a ninguém, nem giram a roda do capital, a mesma lógica para pessoas idosas, PCDs, aposentados por invalidez etc. São pessoas que constantemente estão lutando para não perder os poucos direitos que conquistaram, não vou nem entrar na questão maternidade porque seria extremamente extenso falar sobre a construção da mãe na sociedade capitalista e patriarcal, mas bem grosso modo, mãe também não gera lucro a ninguém (só gera e cria literalmente a força de trabalho, mas isso é nada né capital?) portanto, não produz valor.

Enfim, onde quero chegar com isso tudo é que, inseridos dentro dessa sociedade desde o nosso primeiro respiro, é extremamente difícil pausar, é muito doloroso se ver não produzindo, pois fomos ensinados que a nossa existência enquanto ser que é visto e valorizado está ali, no que produzimos e no quão somos úteis à sociedade e no ritmo que conseguimos essa produção. Se perguntar a uma mãe que pausou a carreira para cuidar dos filhos o que ela tem feito da vida, certamente ela não irá considerar o cuidado e atenção dado aos filhos como algo que produziu e que seja útil e digno de ser visto como valoroso simplesmente porque isso  não enquadra nos moldes que lhe foram ensinados sobre valor e utilidade.

Portanto, pausar sem se sentir inútil é um desafio colossal em pleno 2021. Mesmo vivendo um cenário catastrófico, nossa saúde mental sendo sugada por um genocida no poder, ainda estamos constantemente tentando ser útil dentro de um sistema que nos aprisiona e adoece. Porque amanhã?

Perguntei-me isso com a sinceridade que tenho buscado ter comigo mesma e a resposta foi “Porque quero existir e só existo se sou útil”. Depois de superar a irritação que minha resposta me gerou, conflito interno que chama né, me ajeitei na cadeira e respondi firme “Será mesmo? O que de tão importante tem em ser útil que só isso é capaz de lhe fazer se sentir digna da existência? O que acontece se você pausar e se esquecer da utilidade da vida que lhe ensinaram? O que acontece se você simplesmente descansar seu corpo e sua mente porque é isso que você precisa agora e deixar de lado todo esse papo de está todo fazendo e eu preciso também?”.

Meu lado revolucionário me questionou tanta coisa que resolvi ouvir e, pela primeira vez eu realmente descansei de verdade. Sem propósito, metas ou função, apenas uma pessoa que precisava de descanso de muitas tarefas e só, sem culpa, e isso foi transformador. A culpa é vizinha amiga da roda que gira sem parar, é com o auxilia dela que o sistema faz com que nossos descansos possíveis tenha hora marcada para começar e para acabar, tem que ter uma função e precisa de resultado, mente descansada para mais uma jornada e agora que descansou tem a obrigação de produzir bem e feliz. “Descansou bastante? Perguntam-lhe no retorno das férias” enquanto lhe passam a montanha de trabalho que lhe espera.

Certamente que descansar não é uma opção para muita gente, e acho que olhar somente para o descanso nem é a melhor opção, ele apenas nos conduz a uma reflexão maior. O descanso existe para que a exaustão não tome conta e a pessoa não morra literalmente de tanto trabalhar (como já aconteceu com muitas pessoas). Minha grande pergunta é. Porque vivemos em um sistema como esse?

Pouquíssimas pessoas no mundo são realmente beneficiadas por essa roda que não para de girar, os demais, tipo eu e quase toda a população mundial são apenas peças que não podem parar para não perder seu valor e poder continuar existindo. Eu acredito no potencial humano e consigo sonhar com formas de se viver extremamente mais saudáveis para os seres que aqui habitam e para o planeta do que essa que nos é imposta.

Pausar para “recarregar a bateria” não me parece uma forma de sairmos dessa necessidade de utilidade entranhada em nossos corpos, é preciso subverter-se e encontrar na vida por si só a beleza da existência e, viver em um sistema econômico diferente desse atual me parece não apenas uma coisa legal, mas uma necessidade para a manutenção da vida.

Como seria possível isso? Não faço ideia amanhã, mas acredito que dialogar sobre e encontrar pessoas que estejam dispostas a refletir a respeito da forma como vivemos e possíveis mundos melhores já seria grande coisa, ao menos por hora.

Longe de mim buscar uma utilidade para esta carta, mas caso tenha se identificado com a reflexão e queira dialogar, me escreve, adoraria conversar com você sobre isso.
 
Com curiosidade e afeto.
 
Ana




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