Cartas para o amanhã - Os nãos que a gente não fala # 31

Amanhã,
Para onde vão os nãos que a gente não fala? Aqui ia muito para o estômago, chamavam de gastrite nervosa, as vezes para a cabeça e ouvido, labirintite emocional que chama, e com frequência para meu prato e copo, nas comidas e bebidas que adentram para ver se preenchem os espaços que essa pequena palavra vai criando ao ser aprisionada.
A construção disso tudo é complexa e na maioria das vezes invisível aos olhos da vida corrida. “Para de chorar menina, está todo mundo olhando”, “divide esse brinquedo hem, se não o amiguinho não vai gostar de você”, “não fique com essa cara, abra um sorriso para lhe acharem simpática”, “se adapte ao ambiente para não ter problemas, ninguém gosta de menina cheia de vontades”. A lista poderia ser infinita. E é. Desde muito pequenas, somos moldadas para agradar, o que nos distancia de nós, das nossas verdadeiras vontades e dos nãos que gostaríamos de ter dito em uma infinidade de vezes.
Eles habitam as mais rotineiras situações. Semana passada fui a uma papelaria embrulhar presentes para meus sobrinhos. Gosto de presentes e gosto de presentes com embrulhos bonitos. Como minhas habilidades manuais não são lá muito famosas pela sua destreza e resultado satisfatório, achei por bem pagar por tal serviço. Cheguei ao local e procurando informações sobre os embrulhos a atendente disse ser nova no local e que não fazia este tipo de trabalho a muito tempo. Pedi que chamasse alguém que estava habituado e assim foi, mas a outra pessoa queria ensina-la, talvez por não gostar do oficio ou querer dividir a tarefa, não sei suas motivações, mas o fato é que ela queria usar o meu presente como cobaia e eu não soube expressar meu descontentamento da forma que deveria, ou seja, aprisionei o não mais uma vez.
Resultado. Um presente embrulhado lindamente, por quem já estava habituada a fazer o trabalho e o outro, parecendo que tinha sido embrulhado pela minha filha de 3 anos. Eu, sentia até calafrios, sabe quando o seu descontentamento com algo é tão grande que parece que vai explodir uma bomba dentro de você? Esse é o não sendo mantido refém dentro da gente, gera sentimento de revolta, impotência e raiva, as vezes muita raiva.
Mas desta vez algo em mim se movimentou e libertou esse não prisioneiro. Pedi que o embrulho fosse refeito com o papel que ainda restava e que fosse feito pela pessoa que já estava habituada. Assim, sem brechas, sem alteração ou grosseria, direta e objetiva. Obvio que para a sociedade que está habituada a conviver com mulheres que aprisionam seus nãos, isso soou indigesto e com um olhar fulminante meu pedido foi atendido. Enquanto refaziam o embrulho eu fiquei refletindo como seria a mesma cena, mas vivida por um homem, seria igual? Receberia ele o mesmo olhar fulminante que recebi? Pensei nos mais variados finais e em nenhum deles consegui imaginar que seria igual ao o que ocorre com as mulheres quando resolvem impor sua existência.
Sem mais delongas, acredito que os nãos que não falamos leva um pedaço da gente com eles, um pouco, e as vezes muito, da nossa energia criativa e também da nossa personalidade. Libertar esse prisioneiro, para além de um ato subversivo diante da vida em uma sociedade patriarcal, é criar espaço para a mudança na esfera individual e coletiva.
É dizendo os nãos que necessitamos dizer que os caminhos vão tomando os rumos que desejamos e que precisamos trilhar para um dia, quem sabe, não sermos mais prisioneiras, nem prisão.
Com curiosidade e afeto,
Ana.
Essas cartas são e continuarão sendo gratuitas.
Se você gosta do que escrevo aqui pode me incentivar de três maneiras que sou muito grata:
* 💰 - Me apoiar através do meu financiamento coletivo: https://www.catarse.me/umcontocontadopormim?ref=project_link
* 💰 - Usar minha chave Pix, que é umcontocontadopormim@gmail.com e me apoiar com qualquer valor, só não esqueça de me avisar aqui no e-mail, assim posso te agradecer diretamente.
* 📩 Enviando esta carta para pessoas que possam se identificar com a minha escrita.
Me encontre em outras redes: https://www.umcontocontadopormim.com.br/ https://www.instagram.com/umcontocontadopormim
Para ler as edições anteriores: https: //tinyletter.com/anamargonato/archive
* Todos os direitos reservados
