Cartas para o amanhã - Quando a gente quer ser rio # 32
Amanhã,
Se existisse uma fórmula, um antídoto ou qualquer substância mágica que fosse capaz de lhe arrancar os incômodos da vida, você tomaria?
Me sinto tentada a responder que sim às vezes. Tenho por mim que certos processos requerem tanto da gente que uma pitada de ilusão cairia como uma luva. Olhar o outro com sinceridade e sem o sentimento de posse tem sido para mim um desses caminhos difíceis de trilhar.
Eu já lhe escrevi aqui em várias cartas sobre o meu processo de autoconhecimento e como passei muitos anos da minha vida tentando me encaixar nos espaços que me eram cedidos, desde que coubesse ali, certinho, feito peça de lego. Falei também dos incômodos que isso me gerou e ainda gera, e de toda observação que faço hoje sobre o que realmente me representa.
Analisar as coisas é um caminho sem volta para mim, vou me aprofundando naquela fresta que abri e quando vejo estou pisando terrenos arenosos que parecem me engolir. Neste olhar mais detalhado sobre o que me cobram ser e o que realmente sou, achei por bem inverter os papéis, olhar para o que tenho cobrado do outro e como isso reverbera nas minhas relações.
Claro que a grande responsável por este movimento foi minha filha. Maternidade e revolução, prazer. Olhando para a relação que construo com Isis e me vejo em muitos momentos, mesmo que inconscientemente, tentando convence-la de que determinadas coisas são melhores, mais bonitas, mais interessantes etc, ou seja, tentando molda-la naquilo que acredito. Poderia dizer que isso é para o bem dela? Poderia. Mas posso também olhar para muitos desses movimentos e ver que ali tem alguém com expectativas e, mesmo que não intencionalmente, querendo supri-las, talvez usando “é melhor assim” como justificativa.
Olhar o diferente é incômodo. A gente foge, olha para as qualidades que gosta da amiga e quando tem contato com o que não agrada se distancia, ou tenta não acessar esta parte a todo custo. Nos relacionamentos, chamamos de defeito tudo aquilo que não serve pra gente. Como é que mede o que é bom ou ruim em alguém? De quem é a régua?
Que fique claro que não estou falando aqui de comportamentos tóxicos que adoecem tanto quem os vive, quanto as pessoas que lhe rodeiam. Falo de quem a gente é, nossa essência, aquilo que a gente sente lá no fundo do estômago como uma energia primordial para a existência sem máscaras ou interpretações de papéis.
Me peguei coçando a nuca quando esse turbilhão de perguntas caiu no meu colo. Porque sempre tenho que ficar cutucando meus incômodos, foi a primeira coisa que pensei. Mas essa sou eu, mesmo que eu não consiga dar os passos que gostaria, me alegra vislumbrar o caminho. Faz parte do processo todo, que às vezes é mais lento que tartaruga com preguiça.
A frustração de querer ser rio, enquanto querem que você seja riacho já me visitou tantas vezes que sei bem como é difícil viver na sombra das expectativas alheias. Peguei esse sentimento como norte para traçar os caminhos que quero trilhar com a Isis e com quem mais eu tiver a alegria de dividir a estrada. Não quero olhar apenas para o que me agrada no outro, não quero moldar ninguém, muito menos acreditar que sei o que seria melhor, não quero isso.
Não existe nada mais potente do que um rio que escolhe seu curso e decide onde quer desaguar.
Com curiosidade e afeto,
Ana.
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