Cartas para o amanhã - Fábrica de máscaras #41
Amanhã,
Compro sempre a mesma marca de palitos de fósforo, Fiat Lux, pinheiro, 40 unidades. Quando era criança tinha um tucano que morava no mesmo sítio que eu e minha família, ele frequentava a casa de todos, em horários específicos, na nossa, ele sempre ia na hora do almoço, ficávamos esperando ele nesta específica refeição. Chegava todo barulhento, pousava na janela da cozinha e pegava, com o bico, a caixa de fósforo que ficava na parte superior da tampa do fogão. Ele jogava para cima, como se quisesse fazer malabarismo solo, ficava ali minutos, até mais, jogando e pegando no ar a caixa de fósforo, Fiat Lux, pinheiro, 40 unidades.
Copiamos nossos pais em mais coisas do que gostaríamos de admitir. Talvez seja porque grande parte dos hábitos que se leva para a vida adulta é adquirido ali, naquele núcleo de pessoas que por alguma razão (ou não) convivem juntos por um bocado de tempo.
Mais do que os hábitos, penso nos papéis, nas máscaras que são criadas no decorrer desta relação. Tem quem diga que aprendeu a não criar expectativas sobre outras pessoas, eu, nunca conheci ninguém assim. Pais criam filhos imaginários e, cientes disso ou não, tentam inserir na criança à sua frente as características criadas no seu campo de imaginação, campo este que também foi influenciado pelas suas relações lá na sua infância, como uma espécie de ciclo sem fim de expectativas passadas de geração em geração.
Em contrapartida, os filhos, aprendem a criar máscaras, porque mudar mesmo quem a gente é por dentro é coisa difícil de acontecer. Aprendemos a modelar a imagem que querem, que é recompensada, aplaudida ou ao menos pintada de alguma cor que não seja invisível. Às vezes são tantas as máscaras, que quem se é mesmo fica perdido, feito agulha no palheiro e leva-se uma vida inteira para encontrar. Se tiver sorte, claro.
Fico pensando nas minhas. São de gesso? Melhor que madeira, penso com meus botões. Gesso quebra mais fácil, mas em compensação, são mais rápidas de se modelar do que madeira, isso pode significar um número maior de opções. Talvez metal fosse melhor. Quem usa de metal certamente só tem uma acredito eu, porém, deve ter demorado tanto tempo para moldar que o apego é quase certo. Teria alguma opção que se enquadrasse como “melhor”?
Sem saber ao certo de que material são feitas as minhas, sinto que isso talvez não importe. Máscaras são máscaras, e seu formato, cor, ou seja lá qual for sua característica, não deixa de ser algo que se utiliza para aparentar ser o que não é. É difícil bancar nossas verdades, andar por aí sem máscara pode ser uma experiência desconcertante. Me remexo nos incômodos que isso gera quando resolvo ser ousada e mostrar as partes minhas que tive a sorte de encontrar no palheiro.
Tenho pensado muito nisso, se há realmente uma forma de libertação ou se estamos fadados a seguir, geração após geração gerenciando esta fábrica de máscaras que não parece estar à beira da falência. Penso nos modelos que escolhi. Lembro que isso não importa. Lembro do palheiro. Se houvesse um incêndio, restariam às mascaras ou derreteriam todas sem deixar vestígios? Abro minha caixa de fósforos. Fiat Lux, pinheiro, 40 unidades. Ainda resta um fósforo para riscar.
Com curiosidade e afeto,
Ana.
Espera que vai ter poesia.
Escrevi um poema enquanto divagava sobre esta questão das máscaras e resolvi compartilhar com vocês.
Fábrica de máscaras
Tantas dúvidas levantadas sobre nós mesmos em uma única carta...