Cartas para o amanhã - Fútil para quem? #45
Cartas enviadas ao amanhã, todas as quintas-feiras.
Amanhã,
Eu gosto de decoração. Demorei uma vida para entender isso. Na infância, quando ainda não me sentia digna de ocupar espaços, decorava os lugares que brincava, criava rituais em que a ordem das coisas, as flores, eram pré-requisito para que a mágica acontecesse. Na adolescência, o guarda-roupas de portas brancas e detalhes em vinho, com prateleiras para colocar “enfeites” comprado pelo meu pai da tia rica que trocou o móvel do quarto dos filhos por um mais moderno era o meu grande trunfo, já que não havia nada ali além dele que pudesse chamar de belo. Em uma das prateleiras colocava os dois únicos livros que tinha. Os melhores poemas, de Cecília Meireles e Poemas de Alberto Caieiro, Fernando Pessoa, em outra, um cachorrinho de pelúcia, presente de uma tia querida, assim como os livros, ao lado de um urso, feito pela minha mãe com o tecido de uma colcha aveludada que tinha, um urso verde, brilhante e fofo.
Na vida adulta, onde vivi de kitnet que não tinha nem janela à república em que dividia o quarto com mais duas garotas, decoração nunca foi prioridade. Comprava os móveis usados mais baratos. Itens úteis. O mais próximo que se chegava de uma decoração era a presença de objetos descartados pelas mães das outras meninas, coisas como vasos de flores sintéticas, bibelôs empoeirados e outros cacarecos que, honestamente, deixariam o ambiente mais bonito se ali não estivessem.
Internalizei a ideia de que decorar um ambiente era algo fútil, coisa de quem tem dinheiro sobrando, um gasto desnecessário associado ao consumismo. Mas aí a vida muda, e a gente muda junto com ela. Eu ouso afirmar que este é um dos meus maiores encantos com a vida, a possibilidade de ser mutável, olhar de outro jeito a partir de novas perspectivas.
Desde que o furacão maternidade passou pela minha vida, eu comecei a me inquietar com o externo, mudava uma coisa ali, planejava como ficaria a junção de um móvel próximo a outro aqui e, sem perceber, comecei a sentir o arrumar. Decorar minha casa começou a fazer parte de mim. Coincidentemente (ou não), o meu olhar para a decoração aflorou quando comecei a escrever. Era o meu interno se expandindo para fora através das palavras e do embelezar o espaço em que essas palavras de constroem.
Mas eu continuava achando que era algo fútil. Um gasto que não deveria acontecer, um “capricho” que talvez não devesse me permitir. Me privei de sair do básico. Somente ano passado, em meio a outro furacão chamado Corona Vírus, entendi que enfeitar a minha casa (externa) era também enfeitar a interna. Quando digo enfeitar vou além do significado usual desta palavra. Comecei pelas janelas, enchi todas de plantas, com exceção da sala que a tela não permite acessar o parapeito. Flores, ervas medicinais e plantas comestíveis, um festival de vida brotando, bem ali, na minha frente.
Depois fui ocupando outros espaços com o verde vivo e sem muita observação expandi para as demais áreas com pequenas coisas que mudaram o aspecto dos ambientes. Um tapete aqui, um prato bonito ali, alguns quadrinhos na parede da sala, prateleira com madeira que nós mesmos envernizamos e instalamos. Minha casa mudou completamente em dois anos, assim como eu.
Quando digo pequenas coisas tenho em mente valor monetário, preço. Digo pequenas porque sempre pesquiso para encontrar coisas que me agradem, me representem, mas que sejam monetariamente acessíveis, vulgo, baratinhas. É como se desta forma eu tivesse o aval para me permitir decorar. Algo como “Tudo bem fazer, mas sem se esquecer de onde vem e a que classe pertence, portanto, seja sucinta”. Eu não havia refletido sobre isso até então, me permiti embelezar a casa, mas cumprindo regras aparentemente invisíveis, impostas pelo sistema capitalista. Pertenço a classe que precisa se ater ao necessário. Isso diz muito sobre mim, sobre a forma como me coloco no mundo.
Semana passada, no advento da tão famosa Black Friday, uma pessoa que acompanho nas redes disse “faça uma lista do que você precisa, apenas o que realmente precisa, você sabe o que é, não compre nada além disso”, ela falava sobre o quão encobrimos nossas emoções com compras etc, entendi o contexto e concordo com muita coisa dita ali. Mas naquele momento, aquilo me gerou um incômodo muito grande. Li esta frase enquanto escolhia alguns quadrinhos para colocar na sala de casa de uma loja que acho lindos os produtos, mas nunca havia comprado nada. Estava com 60% de desconto, provavelmente a única oportunidade que eu teria de adquirir algo dali.
Me senti profundamente inadequada. Estava comprando algo fútil, que não preciso. Foi a primeira coisa que me veio à mente. O incomodo foi tanto, que a reflexão de onde vinha tanta dor veio sem qualquer solicitação. De onde vinha esse sentimento de que eu não podia me “dar ao luxo” de comprar itens de decoração. De onde vem o meu conceito de fútil? Como falar do que é realmente necessário sem falar de divisão de classe?
Eu, nascida, criada e residente até hoje na classe trabalhadora fui ensinada de que é preciso suprir as necessidades básicas (ou seja comer e ter um teto sobre a cabeça) e que tudo que vá além disso, lazer, arte, cultura é luxo. Então, às vezes em que você se “dá ao luxo”, se culpa por isso, porque na classe trabalhadora luxo significa gasto desnecessário.
Vivemos no capitalismo e um desenfreado consumo oriundo deste sistema, ponto. O consumismo afeta todas as classes e não estou aqui para dizer que se você é da classe trabalhadora deveria comprar tudo que tem vontade e se endividar com o cartão de crédito. Trago aqui o olhar para outro ponto. A quem é permitido usufruir de tudo que não seja itens de subsistência? Quem define o que é fútil e o que é necessário? Para uma pessoa que não faz parte da classe trabalhadora decorar sua casa é futilidade ou o fluxo natural das coisas?
É sobre isso. Quando se diz comprar somente o que você realmente precisa, estamos falando com qual classe? Isso importa. Muito. O olhar que temos para o mundo é formado através das nossas vivências e experimentações e tudo isso é profundamente moldado pelo lugar que nascemos, crescemos e vivemos. O que é determinado pela classe à qual pertence. Tudo se conecta.
Falo sobre tudo isso porque acho importante que a gente veja de onde vem as nossas crenças, os nossos hábitos, as nossas culpas. O que é necessário ou não, não foi moldado por mim, ele está posto. Refletir sobre isso me traz mais clareza sobre o que realmente importa para mim. Sobre como eu quero me colocar no mundo. Sobre a importância de falarmos sobre a divisão de classes. Sobre a emancipação de corpos que querem mais que comida e casa.
É complexo, eu sei. Certamente esta carta não abrange nem 1% desta temática, mas já me delonguei por demais e espero que tenham conseguido chegar até aqui, neste meu gran finale refletindo junto comigo sobre esta questão. Aos que chegaram, meu muito obrigada.
Semana que vem será minha última carta do ano. Prometo ser mais breve. Prometo. E mais leve também. Bem no estilo Simone “então bom natal...”. Vou tentar. Juro.
Com curiosidade e afeto,
Ana.
Quem leu esse emaranhado todo de palavras, vem conversar comigo, me escreve no e-mail se preferir ou deixa um comentário para dialogarmos em grupo.
O Capitalismo nos divide em classes antagonicas, os esploradores e os explorados, aqueles que gozam e aqueles que produzem, então nada mais adequado para esse sistema que surgir uma ética que estipule e demarque aquilo que é do explorador e aquilo que cabe ao explorado.
A decoração é algo sublime, que excede a esfera da simples subsistência, no capitalismo , essas coisas não são para a maioria, são só para o grupo dominante. Então para a classe trabalhadora que existe só para produzir lucros para os dominadores, e recebe só o suficiente para continuar produzindo, gastar com algo além da subsistência é visto como luxo, como supérfulo. Mesmo TUDO TENHA SIDO PRODUZIDO POR ELA, o necessário e o supérfulo. E a classe dominante não tenha produzido porcaria nenhuma, só roubado.