Cartas para o amanhã

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Cartas para o amanhã - Não somos tão especiais assim #44

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Cartas para o amanhã - Não somos tão especiais assim #44

Cartas enviadas ao amanhã, todas as quintas-feiras.

Ana Margonato
Dec 2, 2021
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Cartas para o amanhã - Não somos tão especiais assim #44

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Amanhã,

Sentei logo cedo em frente o papel em branco desta carta determinada a escrever para você. Mas nada me ocorreu, nenhum assunto que passava pela minha cabeça parecia ser interessante o suficiente para gastar o meu tempo e o seu. Resolvi então me distanciar, fazer coisas que costumam me desligar do racional, momento em que as palavras chegam sem qualquer esforço. Fui arrumar a casa. Nada me traz mais divagações do que fazer coisas manuais.

Resolvi que iria arrumar com vontade, coisa que raramente tem me ocorrido. Organizei os quartos, decidi passar um pano no chão, devolver na sala o tapete que havia lavado, arrumar os brinquedos da Isis espalhados pela cozinha, lavar a louça do café. Quando terminei uma carta havia sido escrito na minha cabeça. Com frequência faço esse exercício para saber se realmente tenho algo por dizer. Ás vezes me entedio com o diálogo, em outras, é tão interessante que paro para anotar.

Acreditava que esse movimento era procrastinação, até ler a deusa da criatividade, Julia Cameron, dizendo que é um exercício maravilhoso para destravar processos criativos. Não necessariamente arrumar a casa, mas deixar de lado aquilo que não está fluindo e fazer algo que desligue, lhe tire do ruminar da mente. Pode ser um artesanato, costura, correr, caminhar, enfim, aquilo que necessita da presença do seu corpo no processo.

Sempre usei desta ferramenta, sem saber que era na verdade uma ferramenta. Fazia de forma intuitiva e na maioria das vezes me culpava. Vivemos na sociedade do cansaço, como bem diz Bian Chul Han, é preciso produzir, mais e mais, mesmo que você não esteja realmente presente no processo. Mesmo que não veja sentido algum no que está fazendo.

Trazendo isto para o campo da escrita, encontro muitas vezes textos que parecem terem sidos escritos por obrigação, para cumprir uma meta. Em redes sociais principalmente. É preciso postar todo dia, é preciso falar sobre coisas impactantes, é preciso, é preciso. Nisso, eu me pergunto. Há coisas realmente relevantes e interessantes para se dizer todos os a dias a todo momento?

Deve estar pensando quem sou eu para ditar regra do que é relevante ou não. E eu lhe respondo. Não sou ninguém e nem quero ditar regra alguma, relevância não é meu ponto aqui, acredito apenas que não é possível haver tanta profundidade e sabedoria em tudo que falamos todos os dias simplesmente porque não somos tão especiais assim.

Talvez isto soe um tanto quanto cruel. Mas pode ser libertador também. Sair do lugar que esta insana sociedade quer que estejamos, da pessoa fodona, que não desliza, não erra, estuda tudo, lê todos os textos que lhe enviam, fala sobre os mais variados assuntos “com propriedade” é como pingar colírio nos olhos para melhorar conjuntivite. Vai lhe dando clareza, passando a pressão, tirando o peso de ter que olhar para muitos lugares ao mesmo tempo, lhe permitindo apreciar a vista turva que se apresenta e se contentar com ela em muitos momentos.

Deixar de cumprir os “é preciso” tem me devolvido minha humanidade. É claro que tudo isso tem seu preço. Continuamos vivendo em uma sociedade capitalista que dita as regras sem deixar espaço para aqueles que não estão dispostos a dançar sua dança. Mas eu acredito que muitas pessoas já se cansaram desta música e estão dispostos a lançar uma nova coletânea.

Eu não tenho coisas importantes e relevantes para falar todos os dias. Isso não me diminui, nem me engradece, apenas me humaniza. Este ano está pesado num nível surreal e ter que escrever quando não tenho nada por falar me soa violento. Comigo e com todos que se dispõe a ler aquilo que coloquei no papel.

Talvez isso ocorra neste espaço também amanhã. Ainda não calhou de não querer conversar com você, mas me comprometo a deixar esta carta em branco se assim meu corpo desejar.

Sou uma humana que não é especial, nem deseja ser.

Com curiosidade e afeto,

Ana.

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