Catando as migalhas do prato #68
Para dar nome as coisas, é preciso tentar.
Amanhã,
Já pensou sobre o que é seu, só seu, e o que é herança da vida que teve desde quando ainda estava no útero da sua mãe? Não consigo acreditar nas teorias psicológicas que afirmam que nada é nosso, tudo é construído. Dá uma sensação de impotência diante da vida. As coisas acontecem (dentre elas muitas coisas bem ruins), você se transforma no resultado disto tudo e, como grande parte do que somos foi criado lá na infância, tem zero controle sobre quem será.
Não sei para você, mas para mim isto é um tanto quanto angustiante. Talvez tenha aí um pouco de negação. Não tive uma infância fácil. Coleciono traumas desde então. Não pensar e não estudar sobre me dava uma espécie de camada protetora. O velho “se eu não penso sobre, não existe”. Mas aí chega a tal da maternidade e, se tem uma coisa capaz de te levar para caminhos que você evitou bastante até então, é se tornar mãe.
Comecei faz um tempo pesquisar sobre trauma, assisti documentários, palestras etc. Medo de traumatizar minha filha? Não sei. Tenho de certa forma já assentado aqui dentro que evitar todo e qualquer tipo de trauma é impossível, mesmo que fosse uma “mãe perfeita”, o que não sou, já que ela não existe. Acredito que o medo real é de causar um grande trauma sem perceber, sem me dar conta do estrago.
Porque é isso. A grande maioria dos traumas não são causados intencionalmente. A cultura, o sistema que vivemos e as crenças bizarras que rondam a infância levam pais a pisarem na bola feio e sequer ter consciência disto. Se somos resultado de tudo que aconteceu na nossa história e tem nela um bocado de coisas que talvez leve uma vida inteira para superar, a chance de gerar aí um trauma geracional na sua criança é grande.
Fiz terapia vários anos. Me conheci muito a partir deste lugar, das trocas com a terapeuta. Mas eu era alguém tão diferente de hoje, que não acessei muitas coisas, talvez por medo ou falta de repertório. Hoje, estudando sobre traumas, me vi entendendo muitos dos sentimentos que não sabia nomear. Muitas portas trancadas se abrindo e claro, incômodos saindo delas e rondando por toda parte.
Entender quem a gente é dói. Muito. Senti como se estivesse catando as migalhas do prato. Aquelas dores aparentemente pequenas, fagulhas quase imperceptíveis, vão se somando a tantas outras e o prato vai ficando cheio de sujeiras por olhar. Entendi alguns trejeitos meus, manias, formas de ver e me colocar no mundo. Perceber que você faz muitas coisas porque aprendeu a fazer daquela forma observando e se relacionando com as pessoas que eram sua referência na infância. Mesmo que deteste aquilo, você faz.
É realmente angustiante. Mas também é libertador.
Entender porque faz algo, é uma possibilidade de mudança. Não dá para mudar aquilo que não conhece. Olhando minhas migalhas (e também os pedaços bem grandes), tenho conseguido sentir o que é possível superar, o que vai levar tempo e tudo bem e aquilo que talvez só na próxima encarnação e olhe lá.
Um caminho e tanto. Que jamais pensei que fosse possível trilhar. É bonito quando a gente dá nome para as coisas. Mesmo quando é doloroso nomear.
De onde observo, tem ainda muitas migalhas no prato. Provavelmente sempre terá. Mas tenho gostado dessa pessoa que resolveu mexer nele. Tenho me surpreendido com quem estou me tornando depois de me permitir tentar.
Mexe nas suas migalhas amanhã. Que gente nova pode brotar.
Com curiosidade e afeto,
Ana.