Amanhã,
As semanas tem passado de forma diferente por aqui. Cumprindo uma espécie de prazo para a escrita do meu romance, tenho mergulhado em suas páginas de forma tão intensa que pouco me resta quando saio da frente do computador. Não me entenda mal, isto não é uma reclamação, tenho genuinamente gostado de vivenciar este processo, um silêncio ensurdecedor que nunca havia sentido antes, mergulhos que certamente não daria, se não fosse por ela, a palavra.
O fato é que tenho estado um tanto quando esvaziada de mim. Neste processo de criação, nada novo parece querer brotar, tem muita coisa saindo, em uma velocidade assustadora e, somente ao final, após a derradeira morte daquela versão, é que o novo surge. Um livro. Eu.
Fiquei refletindo sobre o que escreveria esta semana e na ausência de qualquer originalidade, resolvi consultar “um oráculo”, vulgo, algum livro. Tenho criado o hábito de fazer isso, não necessariamente para escrever, mas refletir sobre o que passa aqui dentro. Abro um livro e bum, lá está algo que parece ter ficado esperando a minha chegada, naquele exato momento.
Já disse aqui que sou meio mística, então é provável que isto não lhe soe estranho. Nestas últimas semanas o livro que tem me acompanhado nesta busca pelas palavras que não encontro é devoção da Patti Smith, gosto muito deste livro, ele mexe comigo de uma forma que não sei ainda explicar. Abri o livro aleatoriamente e eis o que chega até mim:
“Porque alguém se sente compelido a escrever?
A se isolar, a se envolver num casulo, no êxtase de sua solidão, malgrado as necessidades dos outros. Virginia Wolf tinha seu quarto. Proust, suas venezianas fechadas. Marguerite Duras, sua casa calada. Dylan Thomas, seu modesto casebre. Todos em busca de um vazio que pudessem encher de palavras. Palavras que irão adentrar um território virgem, arrombar cofres que ninguém veio abrir, articular o infinito. Palavras que criaram Lolita, O amanta, Nossa Senhora das Flores.
Há pilhas de cadernos que delatam anos de esforços abortados, euforia esvaziada, passos incansáveis pelo chão. Precisamos escrever enfrentando miríades de lutas, como quem domestica um potro voluntarioso. Precisamos escrever, mas não sem um esforço consistente e não sem certa dose de sacrifício: para dar rédea curta às loucuras e aos horrores da imaginação antes de oferecê-la a uma vibrante raça de leitores.
Seria necessário dizer que houveram lágrimas?
Porque alguém se sente compelido a escrever? Me conta.
Na ausência de qualquer coisa realmente relevante que eu possa dizer sobre a vastidão do que é a escrita descrito por Patti, ouso nos levar mais para o fundo ainda com ela, Wislawa Szymborka.
A alegria da escrita
Para onde corre essa corça escrita pelo bosque escrito?
vai beber da água escrita
que lhe copia o focinho como papel-carbono?
Porque ergue a cabeça, será que ouve algo?
Apoiada sobre as quatro patas emprestadas da verdade sob meus dedos apura o ouvido.
Silêncio – também essa palavra ressoa pelo papel
e afasta
os ramos que a palavra “bosque” originou.
Na folha branca que aprontam para o salto
as letras que podem se alojar mal
as frases acossantes,
perante as quais não haverá saída.
Numa gota de tinta há um bom estoque
de caçadores de olho semicerrado
prontos a correr pena abaixo,
rodear a corça, preparar o tiro.
Esquecem-se de que isso não é a vida.
Outras leis, preto no branco aqui vigoram.
Um pestanejar vai durar quanto eu quiser,
e se deixar dividir em pequenas eternidades
cheias de balas suspensas no voo.
Para sempre se eu assim dispuser nada aqui acontece.
Sem meu querer nem uma folha cai
nem um caniço se curva sob o meu ponto final de um casco.
Existe então um mundo assim
sobre o qual exerço um destino independente?
Um tempo que enlaço com correntes de signos?
Uma existência perene por seu comando?
A alegria da escrita.
O poder de preservar.
A vingança da mão mortal.
Com curiosidade e afeto,
Ana.
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Esta semana foi dia nacional do livro infantil, talvez você que me lê não saiba, mas meu livro de estreia é um infantil - Ísis e a Saudade, um livro que surgiu despretensiosamente e acabou se tornando um grande abraço para as crianças lidarem com este sentimento tão ambivalente que é a saudade.
Que trecho lindo do livro da Patti que te encontrou, Ana! Posso te imaginar surpresa e grata por esse presente que se fazia tão necessário para você. <3
Respondendo a sua pergunta, eu diria que eu me sinto compelida a escrever porque é, provavelmente, onde eu mais sei ser. Explico melhor. Na escrita, não há amarras como há na vida “real” acontecendo, por exemplo. Por vezes deixo de dizer coisas que eu gostaria de falar. Na escrita, eu não tenho muito desse receio, pelo contrário, me sinto mais livre. Sou uma ansiedade ambulante, e é bom não ter esse tipo de sufoco na escrita, sabe? Pelo menos não da maneira frequente que a vida aqui fora nos agride. Acho que é mais ou menos isso. <3
amo essa poesia da wislawa. s2