Do que você tem medo? #02

Querido amanhã,
Nesta carta de hoje quero falar sobre um bichinho que tem múltiplas funções na nossa vida. Ele salva, mas também trava, ele potencializa, mas também paralisa. Medo, esse é seu nome.
Chapeuzinho Amarelo do Chico Buarque é um clássico exemplo de seu efeito paralisante.
"Era a Chapeuzinho amarelo.
Amarelada de medo.
Tinha medo de tudo, aquela Chapeuzinho.
Já não ria.
Em festa, não aparecia.
Não subia escada
Nem descia.
Não estava resfriada
Mas tossia.
Ouvia conto de fada
E estremecia.
Não brincava mais de nada,
Nem de amarelinha...”
Quem conhece esse clássico da literatura infantil sabe que Chapeuzinho Amarelo teve que ficar cara a cara com seu maior medo para descobrir o que realmente sentia. Mas como não vivemos em uma história infantil, na prática talvez pareça um tanto quanto mais complexo que isso né. O que se tira dessa história que vejo como primordial é que Chapeuzinho identificou quais eram seus medos, afinal, para que eu possa enfrentar o que me amedronta, preciso nomear. Então a pergunta feita para mim mesma foi, do que você tem medo?
Confesso que já me perguntei isso várias vezes, mas nem sempre fui sincera em minhas respostas. Identificar meus medos me tira do lugar de busca e me coloca na posição de enfrentamento, e isso pode ser bastante assustador. Saber o que me amedronta me coloca em xeque, paralisar ou lutar? Não tenho respostas no agora, talvez você tenha. Certas coisas na vida precisam de tempo para reflexão e de acolhimento para que haja conexão. Identifiquei muitos medos, talvez isso já seja bastante coisa.
Mas afinal, o que temo?
Temo que a vida passe depressa demais, a ponto de não aproveita-la em sua máxima.
Que passe tempo demais pagando boletos e me esqueça de olhar a flor que acabou de desabrochar no gramado ao lado de casa.
Que minha filha se torne adulta e eu não tenha inúmeras histórias para contar sobre nossas vivências.
Que não haja o simples. Livros lidos e relidos no meio da tarde de uma segunda-feira qualquer, filmes assistidos pela milésima vez com muitas risadas e pipoca, como se inédito fosse, experimentos científicos com casca de árvores e poções mágicas imaginárias, abraços longos com gosto de afeto e cheiro de presença.
Que eu perca a oportunidade de sair de casa para pisar na terra e sentir o vento leve que balança as folhas das árvores e leva embora preocupação.
Que eu deixe de olhar nos olhos de todos os seres vivos que me atravessam e ver o brilho único de cada um.
Que haja em minha memória mais casa arrumada e pouca vida aproveitada.
Que eu não enfrente meus medos.
O medo é um lembrete de que as coisas podem acontecer, ou não. Não temos controle sobre nada externo, tudo é possível, inclusive o enfrentamento daquilo que nos faz suar frio. A grande aliada nessa história é a coragem, que transforma o medo em bússola, para que saibamos o que confrontar e o que tomar distância, ambas são ações, e requerem de nós mergulhos internos e respostas sinceras.
Medo e coragem andam lado a lado, como diz o cineasta Jean Pierre Ginhoux, “A Coragem e a insanidade seriam a mesma coisa, se não fosse o medo”.
Concluo, portanto, amanhã, que não controlo o que pode acontecer, afinal, isso é território seu. Não controlo meus medos também, eles surgem das minhas profundezas, da qual conheço ainda muito pouco a ponto de achar que seria capaz de decifrá-la, mas saber quais são (ao menos uma parte) que de lá surgem já é coisa pra caramba e me dou por satisfeita, por hora.
Invoco a senhora coragem, para que se junte a mim nessa grande jornada que é ficar cara a cara com o medo do medo do medo. Acho que dá pra sair viva do outro lado.
Com carinho e afeto,
Ana.