Amanhã,
Envio as cartas semanalmente a quase 03 anos. Neste longo período não houve uma semana sequer sem encaminhar algum texto. Mesmo nos recessos de final de ano, cartas “repetecos” foram programadas para que o conteúdo não deixasse de estar aqui, a disposição de quem queira ler.
Não importa o tsunami da vez, as cartas sempre são enviadas. Mesmo que muitas edições pareçam mais um fluxo de consciência bem desconexo, o envio é certeiro. Em pé ou não, escrevo, envio, cumpro aquilo que chamo de constância básica da rotina de itens que considero essencial.
Poderia dizer que esta disciplina se dá tão somente com as palavras, principal ferramenta da minha carreira, algo importante para mim. Porém, seguir o “programado” é algo muito, muito constante em minha vida. Já contei lá no início das cartas minha trajetória no mundo do direito, em especial na pós-graduação em Direito Tributário, dois anos de puro martírio, o qual enfrentei bravamente, com gravidez e nascimento de bebê no meio, simplesmente porque eu deveria terminar a pós, conforme o programado.
Muito se diz sobre disciplina hoje em dia. Já recebi e continuo recebendo elogios por ser alguém “tão organizada” e “disciplinada” e, não vou negar, em muitas circunstâncias foi esta organização que me levou onde deveria ir e continua sendo a grande chama propulsora para seguir. Os objetivos impostos são o que me mantém no foco e tenho plena consciência da importância disso tudo.
Porém, analítica que sou, me vejo questionando esta extrema organização, que se estende nos cuidados da casa, atividade física, etc, etc. É disciplina mesmo? Só disciplina? Tenho por mim que as camadas que circundam isso tudo vai muito além do “foco e fé”. Quem tem uma rotina bastante organizada consegue ali uma certa previsibilidade dos dias (mesmo que isso seja uma grande ilusão já que viver é caos). Psicologicamente, esta pessoa se sente segura, pois está tudo programado e a tendência é que os acontecimentos sigam uma lógica já prevista.
E isso traz segurança. No fundo do fundo, uma pessoa extremamente organizada está buscando se sentir segura, pois se “organizar certinho”, nada vai lhe surpreender. Você deve estar se perguntando porque estou falando disso tudo, afinal, já me denunciei no início da carta, como uma pessoa que tem a organização como base fundamental da vida. A verdade é que não tenho problema em dizer que nas entrelinhas do meu comportamento reside uma garotinha que busca se sentir segura. Todos temos, garotinhas e garotinhos que habitam nossos corpos e definem grande parte de quem somos hoje, já crescidos.
Disciplina e organização são atributos tidos como bons, enquanto o contrário é visto como desabono. No currículo ninguém escreve “sou desorganizado e indisciplinado”. Porém, abro aqui um convite para que reflitamos sobre essas características, para além do bom e ruim ditado pela estrutura social que vivemos. Tome distância e olhe para seu comportamento de forma mais ampla. Não necessariamente o que dizem ser ruim, é.
Não estou aqui dizendo que perder a hora todos os dias e viver um stress contínuo por não encontrar suas coisas seja algo totalmente positivo, mas pode não ser só ruim. Talvez você seja uma pessoa que aprendeu a não se cobrar insanamente e nos dias atuais, isso pode sim, ter aspectos positivos pois a cobrança pelo “perfeito” tem adoecido e muito toda sociedade.
Deixar de olhar a vida como boa ou ruim, pode ou não pode e passar a observar as entrelinhas, a complexidade que acompanha a forma como nos colocamos no mundo pode ser surpreendente. Ouço a criança que me habita e me alio a ela, em busca de maneiras mais saudáveis de viver meus dias.
Talvez sejamos capazes de curar feridas e a partir disso, se fazer outro, alguém que descobre o novo e ali se encanta. No pior dos cenários, a gente se conhece mais durante o trajeto, e isso pode não ser tão ruim assim.
Com curiosidade e afeto,
Ana
Te entendo tanto, Ana. A minha disciplina é isso, segurança, mas às vezes ela me leva para outro lugar: a insensatez. Tenho trabalho nisso.
Ana, obrigada pela carta.
O reencontro com a criança é um tanto dolorido para todos nós né? Acho que mais e mais pessoas tem atentado para este fato. Ainda que não consigamos nomear exatamente o que sentimos, olhar a criança e acolhê-la é nos enxergar. É mudar. Obrigada pela coragem de se falar.
Até breve
Andreza