Cartas para o amanhã

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É uma cilada Bino #51

anamargonato.substack.com

É uma cilada Bino #51

Sobre um corpo que ainda pretende ser livre.

Ana Margonato
Feb 3, 2022
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É uma cilada Bino #51

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Amanhã,

Estou em um processo de reconhecimento, se assim posso dizer, da minha relação com meu corpo. Acho que já falei um pouco sobre isso aqui. Estou tentando me conhecer melhor, ao mesmo tempo que busco quebrar muitos padrões que me fazem ser absurdamente injusta com quem sou e com este corpo que me sustentou e segurou a barra de tantas coisas que já vivi, que lhe afetaram diretamente.

Desde bulimia, álcool com uma frequência assustadora a muitos cigarros e problemas gástricos. Meu corpo já passou por muita coisa e chegamos até aqui em pé e eu diria, saudável. Estou na minha melhor forma física desde que me entendo por pessoa adulta. E quando falo de forma física, não estou falando de peso. Saúde física e mental depende de muitos fatores que não cabem nos dígitos de uma balança.

Falo isso como um lembrete. Recado de algo que venho aprendendo. É novo esse olhar por aqui. A maternidade me obrigou a ver meu corpo de verdade. Passei a gravidez toda neurótica com estrias, usava cremes e óleos, tudo que me disseram que evitaria cicatrizes. Hoje entendo que na verdade, quando diziam “usa isso que vai proteger seu corpo de ter tal coisa” eu entendia, inconscientemente, que aquilo evitaria a mudança. Meu corpo seria o mesmo. Eu não estava preparada para entender a mudança interna e externa que ocorreria após gerar uma vida.

Entendi na dor. Me senti profundamente incomodada quando vi as estrias que saíram após o parto. “A barriga murchou rápido demais”, disse a enfermeira. O corte da cesária me fazia lembrar que fracassei na tentativa de parto perfeito. Havia gerado uma vida, estava produzindo o alimento mais nutritivo do mundo para um ser humano e ainda assim, só via defeito e feiura ali. Demorei um tempo para ter coragem de olhar meu corpo. E quando olhei, percebi que na verdade nunca tinha olhado realmente.

O caminho é longo. E cheio de desvios. Comecei a me ver com olhos mais generosos. Cuidando melhor de algumas coisas. Consulta com a nutricionista para regular dosagem de vitaminas. No final da consulta, peso x, percentual tal de gordura, plano alimentar. Retorno 30 dias. Parabéns, está indo muito bem. Evoluiu. Retorno 3 meses. Retrocedeu. Mudar plano alimentar. Retorno 15 dias. Desmarquei.

Me vi apertando as mãos ansiosamente na última consulta. Achei que talvez o santo não estivesse batendo com a nutricionista. Mas eu gosto dela, pensei. Talvez seja minha sabotadora. Quem sabe ainda o medo da mudança. Minha cabeça não parava e o incomodo não desaparecia. Até que uma voz, aquela vozinha que às vezes a gente não escuta por pura teimosia, falou baixinho no meu ouvido “é uma cilada bino”.

Lá estava eu me punindo porque comi pão no jantar de sábado à noite com os amigos, porque não deu tempo de fazer o lanche da tarde e comi mais no jantar. A alimentação se tornando um peso e a atividade física uma obrigação. Totalmente no sentido oposto da relação que estou tentando criar com meu corpo.

Não é culpa da nutricionista, já adianto. Nós enquanto sociedade não estamos preparados para termos corpos livres e realmente felizes. Uma vida toda de submissão, padrões e crenças nos leva ao automático pensamento corpo magro é saudável. E ponto final. A forma como se chega (e se mantém) neste corpo não é o foco. O caminho não importa, desde que o resultado seja um corpo belo e desejável.

A minha relação com meu corpo está longe de ser saudável. Ainda não sei ser grata. Mas quero ser. Quero agradecer por tudo que ele sustenta, sustentou, independente de achar belo ou não. Não sei se um dia vou sentir o maior amor do mundo por ele. Mas respeito eu quero ter. Próxima consulta com a nutricionista. Online. Apenas para acompanhar as vitaminas.

A linearidade das coisas não cabe na vida. Eu me alimento muito bem. Só não como tudo orgânico porque o capitalismo não me permite. Há saúde aqui. Mas não é linear. Algumas semanas tudo flui, como com calma, atenta, na medida certa. Em outras, o caos impera, a comida desce na força do ódio e as coxinhas veganas do tiozinho do centro se fazem necessárias, mesmo eu ficando com azia depois.

Está fluindo. A relação consciente entre eu e o que eu como está em constante evolução. Não faz o menor sentido ficar me medindo e pesando, esperando ganhar um “muito bem” da nutricionista. Não é sobre isso. Não é este caminho que eu quero trilhar. Às vezes parece que não estou evoluindo nesse lance de autoconhecimento, mas quando sentenciei de onde vinha meu incomodo nas consultas, percebi que passos foram dados. Virei algumas chaves e são daquelas que não costumam retornar mais ao status quo.

Com curiosidade e afeto,

Ana.

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