Olá pessoas queridas!
Esta é a primeira edição extra do mês e decidi enviá-la no domingo para que possam desfrutar deste conto em um dia que costumamos viver tudo mais lento (ao menos espero que você que me lê possa fazer isso).
Tenho escrito alguns contos nos pequenos intervalos que dou da escrita do romance. Um respiro, como gosto de chamar. Mudar de ares me ajuda a centrar na escrita, quando se dá o retorno para aquele outro universo em construção.
Este conto em especial escrevi alguns meses atrás, com a intenção de presentear algumas pessoas queridas com algo diferenciado em seus aniversários. Hoje, decidi compartilhar com vocês e, caso queiram, me escrevam contando o que acharam pois amo essas trocas interpretativas que me dizem muito de mim e da minha escrita.
Ótimo domingo e boa leitura!
Os passos que dei até te encontrar
-Vá até a casa de sua avó e avisa que sua tia Joana voltou. Não pare no caminho. Não fale com ninguém. Não pare no lago para se refrescar. Siga reto até a casa de sua avó e dê o recado.
- E depois mãe?
- Depois o que menina?
- Depois que a vó souber que tia Joana voltou.
- Depois é coisa de gente grande. Vá e faça o que lhe mandei.
Dalva suspirou fundo com a intenção de tentar um argumento, queria fazer parte daquele mistério, mas ao olhar para o semblante da mãe constatou que não seria incluída naquele clã. As linhas de expressão de sua testa saltavam quando os nervos vinham ao ataque, e naquele momento, as viu pulsar, formando uma espécie de placa sinalizadora de sua tensão. Estava aprendendo a ler ainda, mas aqueles dizeres interpretou sem dificuldade, saiu rumo a casa de sua avó sem dizer mais nenhuma palavra.
Quando Joana partiu Dalva era ainda um bebê. Embora tivesse idade suficiente para comer, andar e balbuciar uma palavra ou outra, era um ser totalmente dependente do cuidado alheio. Seus passos eram rápidos e desconexos, sem a ajuda de uma mão que lhe desse apoio, caia rapidamente. Sua tia ajudava com seus cuidados. Certa vez ouviu a avó dizer que “Joana teria sido uma boa mãe”.
Seus passos agora eram precisos. Os tempos de dependência haviam ficado para trás. Era agora uma menina prestes a se tornar moça. Alguém que não sabia ainda de seus caminhos, mas já não precisava que alguém segurasse sua mão. Sorte a sua, já que fazia tempo que nenhuma mão era estendida em sua direção. Desde que Joana havia partido, restou à Dalva apenas lamentos e olhares de decepção. Ser mulher naquela família parecia ser um mau agouro. Ninguém esperava muito dela e isto de alguma forma lhe abria estradas perigosas que seus pés ansiavam por poder pisar.
A casa da avó ficava cerca de três quilômetros da sua, uma distância que sempre pareceu passar despercebida, mas que naquele dia transformou-se em uma jornada épica na qual suas pernas não estavam certas se o destino as acompanhava. Assim que chegou na porteira que fazia divisa com o sitio da Dona Alzira, viu no canto da estrada um filhote de capivara. O local era bem próximo do lago, aquele que sua mãe deixou bem claro que deveria manter distância.
Aproximou-se sorrateira do pequeno animal que parecia estar tomando o sol da manhã, na intenção de lhe dar um susto, quando ouviu o canto de passarinho que ficava cada vez mais próximo. Ficou tentando lembrar que passarinho cantava daquele jeito até que deu um pulo. Cantagalo! Mal teve tempo de mover suas pernas quando sentiu o vulto passando rente sua panturrilha. O filhote de capivara saltou feito grilo e sumiu dentro d’agua. Dalva teve tempo suficiente para voltar à estrada e correr sem olhar para trás até não conseguir mais respirar.
A cobra não a seguiu. Tinha encontrado uma Cantagalo apenas uma vez na vida, por volta de seus cinco anos, quando buscava água na mina para a avó. Ficou ouvindo aquele canto hipnotizada. Uma cobra que canta feito passarinho. Inacreditável. Por alguma razão, talvez pelo lisonjeio, a cobra lhe ignorou e foi embora sem causar qualquer problema. Desta vez, Dalva provavelmente atrapalhou sua refeição e isso não era algo muito perdoável na natureza.
Passou a mão na panturrilha e sentiu o sangue ainda quente escorrendo. A cobra acertou de raspão sua pele. Será que entrou veneno? Pensou em voltar. Lembrou das veias saltadas da mãe. Justo hoje uma coisa dessas. Seguiu. Precisava chegar até a casa da avó. Precisava dizer que tia Joana tinha voltado.
-Ninguém mais fala esse nome nesta casa tá entendido? Disse a avó um dia que chegou de surpresa e ouviu Dalva e os irmãos trocando segredos, dizendo cada um a parte da história que acreditavam saber. Dalva queria perguntar tantas coisas. Porque a tia se foi? Quem era a pessoa que levou ela? Porque ela saiu no meio da madrugada escondida? Mas ninguém responderia suas perguntas. Dalva achava que tamanha taciturnidade ocorria porque era jovem demais, não lhe passava pela cabeça que a avó também não sabia as respostas e na ausência do saber, o silêncio se faz presente.
Andou cerca de dez minutos, até que ouviu sussurros vindo de trás do cupinzeiro. Com as chuvas tão constantes o mato já estava alto e do monte construído pelos cupins via-se apenas a ponta. Agachou e começou a distinguir os grunhidos. Eram duas pessoas, a voz de uma delas parecia de sua prima Dolores, conhecia aquele riso, mas de quem era a outra voz? Riam baixinho, entre pausas, outros sons surgiam sem que conseguisse identificar o que estava acontecendo. Dalva sentiu a perna latejar, o sangue já estava seco e o local da picada havia mudado de cor, uma vermelhidão tomou conta de toda região indicando a presença da Cantagalo em seu corpo. Sentou-se no chão e por alguns instantes ignorou a dor, ficou ouvindo risos, gemidos e sons abafados. Não sabia o que se passava atrás do cupinzeiro, mas sentia, que aquilo era bom.
A perna começou a dar fisgadas e com certa dificuldade conseguiu levantar-se, seguiu rumo a casa da avó. Não está longe, em breve darei o recado. Em breve sua avó saberia que Joana voltou. Pensou nas tantas vezes que a avó fez silêncio diante do nome da tia. Qual seria sua reação em saber que ela estava ali agora, de volta? O que fez a tia ir e o que a fez voltar? Dalva sentia um pulsar pelo corpo todo, suas veias pareciam querer saltar, como as da mãe. Era ainda muito jovem, mas tinha ânsia de compreender a vida. Vontade de engolir o mundo sem mastigar.
Seus passos estavam lentos, não conseguia mais manter o ritmo que sua mãe ordenou. Será que é assim que as pessoas se sentem quando se tornam adultas? Cansadas a ponto de pensar se vale a pena seguir, chegar no fim prometido e ansiado? Tia Joana havia se apaixonado por uma pessoa má. Esta foi a parte da história que conseguiu ouvir escondida atrás da porta do quarto de seus pais. Seus irmãos tinham partes estranhas em sua posse, José disse que ouviu dizer que ela gostou da professorinha nova da fazenda e que foram embora juntas. Marta tinha ouvido que ela era estranha, enlouqueceu e sumiu na madrugada. Nada disso fazia sentido, tia Joana era uma pessoa amável, conseguia se lembrar do tempo que passavam juntas, era ainda um bebê, mas sentia no peito a presença da tia como uma brisa boa em dias de sol quente.
Seu corpo parecia não estar acompanhando a memória, já visualizava a casa da avó, conseguia ver o teto de telhas antigas cheias de marcas do tempo. Sentia o cheiro do café coado no pano, do pão saindo da fornalha. Passos lentos, porém, firmes, da avó que embora tenra idade, mantinha a vida em pé. Um lar vazio dentro de si. Era assim que se recordava das tantas vezes que foi companhia para a avó e no silêncio que a relação compunha, ouvia os passos dela como quem ouve as histórias pisadas por aqueles pés.
Avistou as galinhas cacarejando na estradinha que antecedia o quintal da avó. Estava perto. O cheiro do café coando já poderia ser alcançado daquela distância, mas Dalva não conseguia sentir nada além de uma pulsão nunca sentida antes. Seu corpo parecia dançar junto com seu coração, um ritmo só, forte, rápido, mortal. Não sentia mais as pernas, perdeu a noção de espaço. Restava apenas os olhos, capazes de leva-la até onde deveria ir.
Avistou um corpo mirrado, pernas rápidas, vestido longo e barra por fazer. A avó. Será que ela consegue me ver? Ansiei tanto por este dia. O silêncio quebrado e as portas reabertas. Uma vida para além de ficar em pé. O que uma menina sabe sobre a vida? Ouvia por vezes dos adultos ao redor. Talvez nada. Só sei da vontade de descobrir. O vulto da avó parece estar cada vez mais próximo. Sente seu cheiro, um misto de erva benta com desconsolo.
- Vó. Tia Joana voltou. Será que a vida voltou junto com ela?
Com curiosidade e afeto,
Ana
que lindo esse conto, Ana! obrigada por compartilhar.
me sentindo honrada de ter esse conto impresso s2