EDIÇÃO EXTRA - Apoiadores #19
Por vezes, nas proximidades dos brejos ressecos, se encontram arraias enterradas.
Aprendi a andar de bicicleta aos sete anos de idade. Minha prima ganhou uma bicicleta vermelha com detalhes em branco, estilo retrô. Ali, naquele lugar, não existia a ideia de que adultos ensinam crianças a andarem de bicicleta, nem sequer compravam bicicletas, pudera ter tempo para ensinar seus manejos.
Nós duas, primas inseparáveis, tínhamos (ela no caso) o objeto desejado. Então, aprender a usá-lo era só uma questão de tempo. Depois de muitas pernas raladas e roxos colecionáveis, lá estávamos nós, levantando poeira, ostentando o orgulho de termos, sozinhas, aprendido algo que parecia importante.
Mas a memória é mistério, escolhe trechos e detalhes por conta própria. Entre as tantas pedaladas, o que se instalou como vívido em mim, foi a ausência. É como se ainda hoje pudesse sentir o quão queria não ter feito aquilo na raça, aprender algo as vezes requer a presença de alguém que ensine e mantenha-se por perto para observar o aprendizado. Embora tenha me saído bem na tarefa, o vazio daquele espaço não preenchido criou um buraco, grande o bastante para ocultar os melhores trechos da história.
“Por vezes, nas proximidades dos brejos ressecos, se encontram arraias enterradas. Quando as águas encurtam nos brejos, a arraia escolhe uma terra propícia, pousa sobre ela como um disco, abre com as suas asas uma cama, faz chão úbere por baixo – e se enterra. Ali vai passar o período da seca. Parece uma roda de carreta adernada...” Manoel de Barros.
Trinta e um anos depois, lá estava eu na bicicletaria, tirando as rodinhas de uma bicicleta rosa degradê que Isis herdou da filha de uma grande amiga. Engraxa, arruma o freio, um sorriso, o bicicleteiro parece contente em fazer parte daquele momento de transição.
Não tenho como saber qual será a importância disto na memória da minha filha. Vai saber o que será guardado ali. Eu, olho para os muitos roxos que ficaram em minhas pernas das quase quedas dela, em que apoiei a bicicleta em mim e sinto algo que talvez a literatura e a poesia sejam capazes de explicar.
As histórias que vivemos moldam nossas memórias, sim, mas elas não definem o quão podemos ser surpreendentes. Reviravoltas, mudanças, novas versões. Fazer de um jeito diferente do que é esperado de acordo com o roteiro que já foi vivido.
Quando leio narrativas que me encantam, poemas que tomam minhas lágrimas sem esforço, sinto a beleza do caminho do entre. As palavras residem em um universo capaz de acender em nós memórias escondidas, trazer à superfície partes criadas nas profundezas do todo. A literatura acorda a garotinha que sem apoio e até mesmo, sem uma bicicleta para chamar de sua, aprendeu o que queria aprender e continuou correndo atrás daquilo que lhe brilha os olhos.
A arte é o aprofundando das camadas da vida. Nos mostra que são muitas as versões, dribla o acervo seletivo da memória, e traz à tona aquilo que foi descartado por ser pequeno demais. É de uma potência tão grande que transforma as narrativas na sutileza. Mostra para aquela menininha corajosa, que ser ela a figura que um dia tanto quis ter, é uma bela forma de criar o que tanto ama nas histórias: a surpresa.
Este texto é uma pequena introdução desta edição para apoiadores, dando contexto ao vídeo que segue abaixo, no qual leio trechos de alguns livros que acho simplesmente fantásticos, que movem o melhor de mim. Falo também um tanto sobre experiências literárias coletivas, enfim, é um grande ode à literatura, e quem sabe, inspiração para novas narrativas de alguém.
“O único efeito que desejo ardorosamente criar com meus escritos é que os leitores se tornem mais capazes de imaginar e sentir as tristezas e as alegrias daqueles que são diferentes deles em todas as coisas, exceto o fato geral de serem criaturas humanas que lutam e erram.” George Eliot
Ana, que edição maravilhosa! Fernando Pessoa, meu Deus!!! Maravilhoso sempre. Adorei a tua fala sobre a melancolia do artista e sobre o papel da arte em transmutar algumas questões e, ao mesmo tempo, promover uma desacomodação. Lembrei da fala da Grada Kilomba, no Roda Viva. Beijo e obrigada pela edição primorosa!
Deixo o link:
https://youtu.be/CGopH9rfLY8?si=GdBtLPVJHFZJ8WRU