Amanhã,
Vamos fazer algo diferente esta semana?
Acho que já falei por aqui (ou não) que estou fazendo uma oficina longa de escrita com Marcelino Freire. Ficaria horas falando sobre esta experiência, as aulas, as pessoas, tudo, é absurdamente diferente de tudo que presenciei nos cursos que já fiz. Como dizem alguns colegas de turma, aquilo ali não é curso, é encontro de almas. É difícil explicar, só vivendo mesmo para entender o que essas palavras querem dizer.
Pois bem, Marcelino passou um exercício que fez um grande movimento aqui dentro. Inspirado na escritora argentina Aurora Venturini que, aos 85 anos ganhou seu primeiro prêmio literário e ao subir no palco para fazer o discurso disse “Finalmente, um júri honesto” nos pediu que escrevêssemos uma carta aberta ao público, lá do futuro, aos 85 anos, falando de nossa trajetória.
Eu, bem da maluca que sou, não bastasse escrever esta carta para apresentar em aula, em um momento de pouco sanidade e apreço por mim mesma, decidi publicá-la aqui. Me emocionei pensando na minha versão idosa e sei lá, talvez seja um lampejo por aí, inclusive, instigo vocês a escreverem esta carta também e se quiser (ficaria muito honrada), enviem para mim.
O que seu eu de 85 anos diria sobre os dias que já se foram?
Vamos a carta:
Escrever uma carta aos 85 anos é algo que considero absurdamente satisfatório.
Não vou mentir, esperava por isso. Sempre acreditei que estaria aqui, viva e ativa nesta idade, fazendo o que faz meu coração ainda se sentir jovem. Tantas palavras colocadas no mundo, e ele ainda não se cansou de mim, como pode.
Escrevi tantos livros que alguns sou capaz de negar autoria (ou simplesmente esqueci que foram escritos por estas mãos). As palavras foram tomando formas diferentes, abrindo crateras dentro de mim, se embrenhando tão lá no fundo que o que foi escrito na borda, não se conversa com o que saiu lá das profundezas.
Ser lida sempre foi algo muito valoroso para mim. Sim, muita vaidade, eu sei. Mesmo nesta idade ainda gosto de ouvir o som das minhas palavras em bocas alheias, sinto que a entonação que não é minha, a interpretação que não me acompanha, abre espaços na minha escrita de tal forma que somente o coletivo é capaz de criar. Quando alguém me diz que leu um livro meu e sentiu x coisas, eu sinto também, e meu peito abre caminho para novas formas de me conhecer.
A velhice tem seus percalços, porém, consegue ter altas doses de libertação. Nesta idade, o corpo, como se sente e pensa na juventude, já não tem o menor valor. É preciso cuidar das bordas, manter o que importa funcionando. Corpos paradisíacos me cansam. Sei que perdi um certo tempo com tudo isso, mas dou-me por satisfeita em, ao menos por um tempo da minha existência, não ter mais dado importância para o que não importa para mim.
Prêmios: Existe alguém que não os queira? Em algum momento mediu realmente meu trabalho? Mais uma vez, vaidades (e dinheiro, claro). Como já dizia Manuel de Barros “Minha poesia não gosta de dinheiro, mas o poeta gosta”. Os prêmios não mediram em nada minha escrita, hoje sei. A aleatoriedade que acomete a escolha de um livro a ser premiado é tão grande, que mais beira a sorte do que competência. Porém, não nego que foi grande a minha satisfação.
Passei tantos anos acreditando que meus começos foram tarde demais. Entrei na faculdade aos vinte e três, comecei a ver a escrita como possibilidade aos trinta e quatro, publiquei meu primeiro livro aos trinta e sete. Por muito tempo me envergonhei da total ausência de brilhantismo juvenil, dos passos ousados que não se fizeram presente no auge da juventude. Era como se tivesse desperdiçado parte da minha vida por falta de repertório. Hoje dou risada da minha versão ainda jovem e julgadora de si mesma. Como me cobrava, credo. Uma vida tão cheia de histórias e eu só via o que não estava no menu. Ao menos não deixei de correr atrás daquilo que acreditava por me achar velha demais, ao menos isso, ou agora estaria aqui imaginando minha jovem face para esbofeteá-la com toda minha força.
Aos jovens (cinquenta é jovem para mim ok) que por ventura lerem esta carta, digo sem pestanejar. NÃO DEIXEM DE FAZER ABSOLUTAMENTE NADA EM RAZÃO DA IDADE. As chances de se arrepender por aquilo que não fez é grande e disso me orgulho, pois aqui não são muitos os arrependimentos. Não fui a melhor, muito menos a mais desejada. Mas eu vivi, ao lado daqueles que me querem bem, de braços dados com os que dançam descalço na chuva e com plena conexão com aquela que coloquei no mundo.
Não sei ainda quanto tempo tenho, Cronos já começou me cobrar suas horas e meu corpo, embora seja ainda muito gentil comigo, já me dá sinais de que é preciso respeitar a natureza. Tudo que um dia nasce, há de morrer. Ultimamente escrevo como se fossem as últimas palavras que colocarei no mundo, talvez por isso ando soando um tanto quanto mais dramática do que o habitual. Ao menos agora tenho uma desculpa.
Não sei quando meu corpo deixará esta existência (que bom, não saber), por isso faço desta carta uma espécie de redenção, a mim, aos meus, a todos aqueles que tentaram e não obtiveram sucesso, aos que não souberam o que fazer com a multidão. Não sei quanto tempo a humanidade fica por aqui, quantas décadas para que meu nome, se perca na escuridão. Vaidades, vaidades que me acompanham até o final. Que minhas palavras voem longe e quando não mais se fizerem presente, juntem-se a mim, no sono daqueles que viveram tudo que havia de se viver.
Até o fim.
Com curiosidade e afeto,
Ana.
Algumas semanas atrás postei um vídeo apenas para apoiadores falando sobre processo criativo. Está disponível para todos agora, assista pelo link abaixo.
Semana que vem eu e Fernanda Misumi iremos realizar uma oficina em parceria com a Unifesp. As vagas já estão quase finalizadas, portanto, se tem interesse corre se inscrever aqui. PS: A oficina é gratuita.
Ele ainda não se cansou de mim #114
Que lindo! ❤️
Arrasou na carta!!! Senti que lia uma pessoa de 85 mesmo kkk
Vou tentar fazer esse exercicio depois