Cartas para o amanhã

Share this post

ENSAIOS #02 - Mistérios da literatura

anamargonato.substack.com

ENSAIOS #02 - Mistérios da literatura

Edição extra apoiadores

Ana Margonato
Mar 14
6
Share this post

ENSAIOS #02 - Mistérios da literatura

anamargonato.substack.com

Marcelino Freire diz que quando a escrita atinge espaços que aquele que escreve não alcança, não possui explicação lógica para aquelas palavras, é porque chegou à um lugar importante na escrita. O chamado mistério da literatura. Interpretações, sensações e até mesmo recursos literários que vão além do que a pessoa que escreve é capaz de enxergar e prever.

Certamente que a prática, estudo e uso contínuo de técnicas literárias te levam a utilizar recursos e métricas de forma inconsciente muitas vezes. Assim como dirigimos sem pensar em pisar no acelerador ou no freio; apenas pisamos, a escrita pode fluir sem o raciocínio lógico propriamente dito, a escolha das palavras na formação de um texto simplesmente acontece e, em algumas ocasiões, após reler, encontra ali certas esquinas, mistérios que, amiúde, não são decifráveis pelo próprio escritor.

O mistério da literatura é um poço profundo, no qual alguns mestres beberam de suas águas e outros, mergulharam de corpo inteiro.

                                                         “Não entender, não entender, até virar criança. ”

                                                  (O Cara-de-Bronze, em Corpo de baile, J. G. Rosa)

João Guimarães Rosa é sem dúvida um dos mestres do mistério da literatura brasileira. Considerado o maior escritor brasileiro do século XX, foi precursor de estruturas de linguagem que se distanciam do convencional, personagens absurdamente envolventes e camadas tão profundas em sua narrativa que nem ele era capaz de ter consciência de tudo que ali continha.

Ouso dizer que você pode ler Guimarães exaustivamente, e a cada leitura, encontrará elementos que haviam lhe fugido aos olhos na leitura anterior. O mistério fazia parte da construção de sua narrativa. Um mistério que a meu ver, anuviava e inspirava o próprio Guimarães.

“.... Ah, mas então, de sobredentro de minhas ideias – do que nem certo sei se seja meu uma minha-voz, vozinha forte demais, de tão fraca, suministrou um cochicho. Foi. Em tão curta ocasião que teve, essa vozinha me deu aviso. Ah, um recanto tem, miúdos remansos, aonde o demônio não consegue espaço de entrar, então, em meus grandes palácios. No coração da gente, é o que estou figurando. Meu sertão, meu regozijo! Que isto era o que a vozinha dizia: - “Tento, cautela, toma tento, Riobaldo: que o diabo fincou pé de governar tua decisão!....” A anteguarda que ouvi, e ouvi seteado; e estribei minhas forças energias. Que como? Tem então freio possível? Teve, que teve. Aí resisti o primeiramente. Só orçava. O instante que é, é – o senhor nele se segure. Só eu sei....”

                                   (Grande Sertão: Veredas – Guimarães Rosa, pag. 338)

Como ler um trecho de Grande Sertão e não se ver envolto em um grande mistério? As palavras te sugam para um universo paralelo e para além da gramática ou entendimento literal do que ali se coloca, você sente e com sorte, leva este sentimento consigo pela vida afora.

Costumo afirmar que, para mim, a literatura é uma espécie de entidade. Algo que vai muito além do autor e leitor. Uma construção de algo a mais, que chega no leitor-casa, ao seu modo, como deve ser. Pode ser que seja esta uma interpretação mística demais.

Keep reading with a 7-day free trial

Subscribe to Cartas para o amanhã to keep reading this post and get 7 days of free access to the full post archives.

Already a paid subscriber? Sign in
© 2023 Ana Margonato
Privacy ∙ Terms ∙ Collection notice
Start WritingGet the app
Substack is the home for great writing