Marcelino Freire diz que quando a escrita atinge espaços que aquele que escreve não alcança, não possui explicação lógica para aquelas palavras, é porque chegou à um lugar importante na escrita. O chamado mistério da literatura. Interpretações, sensações e até mesmo recursos literários que vão além do que a pessoa que escreve é capaz de enxergar e prever.
Certamente que a prática, estudo e uso contínuo de técnicas literárias te levam a utilizar recursos e métricas de forma inconsciente muitas vezes. Assim como dirigimos sem pensar em pisar no acelerador ou no freio; apenas pisamos, a escrita pode fluir sem o raciocínio lógico propriamente dito, a escolha das palavras na formação de um texto simplesmente acontece e, em algumas ocasiões, após reler, encontra ali certas esquinas, mistérios que, amiúde, não são decifráveis pelo próprio escritor.
O mistério da literatura é um poço profundo, no qual alguns mestres beberam de suas águas e outros, mergulharam de corpo inteiro.
“Não entender, não entender, até virar criança. ”
(O Cara-de-Bronze, em Corpo de baile, J. G. Rosa)
João Guimarães Rosa é sem dúvida um dos mestres do mistério da literatura brasileira. Considerado o maior escritor brasileiro do século XX, foi precursor de estruturas de linguagem que se distanciam do convencional, personagens absurdamente envolventes e camadas tão profundas em sua narrativa que nem ele era capaz de ter consciência de tudo que ali continha.
Ouso dizer que você pode ler Guimarães exaustivamente, e a cada leitura, encontrará elementos que haviam lhe fugido aos olhos na leitura anterior. O mistério fazia parte da construção de sua narrativa. Um mistério que a meu ver, anuviava e inspirava o próprio Guimarães.
“.... Ah, mas então, de sobredentro de minhas ideias – do que nem certo sei se seja meu uma minha-voz, vozinha forte demais, de tão fraca, suministrou um cochicho. Foi. Em tão curta ocasião que teve, essa vozinha me deu aviso. Ah, um recanto tem, miúdos remansos, aonde o demônio não consegue espaço de entrar, então, em meus grandes palácios. No coração da gente, é o que estou figurando. Meu sertão, meu regozijo! Que isto era o que a vozinha dizia: - “Tento, cautela, toma tento, Riobaldo: que o diabo fincou pé de governar tua decisão!....” A anteguarda que ouvi, e ouvi seteado; e estribei minhas forças energias. Que como? Tem então freio possível? Teve, que teve. Aí resisti o primeiramente. Só orçava. O instante que é, é – o senhor nele se segure. Só eu sei....”
(Grande Sertão: Veredas – Guimarães Rosa, pag. 338)
Como ler um trecho de Grande Sertão e não se ver envolto em um grande mistério? As palavras te sugam para um universo paralelo e para além da gramática ou entendimento literal do que ali se coloca, você sente e com sorte, leva este sentimento consigo pela vida afora.
Costumo afirmar que, para mim, a literatura é uma espécie de entidade. Algo que vai muito além do autor e leitor. Uma construção de algo a mais, que chega no leitor-casa, ao seu modo, como deve ser. Pode ser que seja esta uma interpretação mística demais.
Quem sabe? Meu posicionamento surge do fato de que certos livros após serem colocados no mundo, transcendem a pessoa que o escreveu. Passam a ser algo que nem o próprio autor é capaz de explicar, alcançam espaços na sociedade que não pertencem exatamente a pessoas e sim ideias que criam vida a partir daquelas palavras que foram colocadas no papel.
Não vou adentrar aqui na profunda questão sobre a morte do autor. Acredito que o livro tem em si a essência de quem o escreveu e a discussão se o livro deixa de ser parte do autor ou não após sua criação é profunda e interessante, mas aqui quero falar das minúcias, aqueles detalhes que são muitas vezes o grande coração do livro, coisas que não estão ali por acaso. Ou estão ali por acaso. E não necessariamente isto tem a ver com o autor.
Clarice Lispector certamente conhecia este mistério que ronda a literatura e não só o integrava em sua escrita, como tinha parte com ele. Um verdadeiro assombro literário magnifico.
“Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. ”
(Trecho de Agua Viva – Clarice Lispector)
Adentrar nos mistérios da literatura é um mergulho. Em si, no outro, a partir do que lhe habita. Escritores que trazem esta névoa em suas palavras tem como intuito, acredito eu, de entender a si, e principalmente, estão dispostos a se molhar.
“Escrevo-te porque não me entendo”
(Trecho de Agua Viva – Clarice Lispector)
O mistério é das palavras. Por isso um livro é algo tão potente, capaz de lhe transportar para caminhos inimagináveis. Guiar jornadas inteiras, sussurrar o trajeto e, de uma forma ou outra, se fazer companhia, quando se mais precisa.
O mundo é meu, mas é demorado...”
(Grande Sertão: Veredas – Guimarães Rosa, pag. 442)
O poço, cavado pelas palavras que me brotam, se aprofundam em meu peito e me levam para além do que sou capaz de explicar. Adentro neste mistério e quando emerjo de tamanha profundidade, as palavras me preenchem de algo que não sei nomear. É vastidão, para além dos olhos, para além do entendimento. E assim deve ser.
Elena Ferrante, em seu último livro, um ensaio sobre a escrita A margem e o ditado, discorre sobre o lugar em que se habita o mistério (ou não):
“Acho que a minha ideia de escrita – e também todas as dificuldades que arrasto comigo – estão relacionadas à satisfação de ficar plenamente dentro das margens e, ao mesmo tempo, à impressão de uma perda, de um desperdício, por ter conseguido. ”
(A margem e o ditado – Elena Ferrante)
Utilizando de uma metáfora a qual dá o nome do livro, Ferrante fala deste mistério, uma vez que, nós escritores, ao tentarmos nos adequar as margens do que “deve ser”, perdemos a oportunidade de deixar o mistério adentrar. A escrita que abre espaço para o não explicável pode não se tornar um livro majestoso ao final, mas é um chamado, um convite ao que não possui explicação, uma possibilidade de que ele esteja presente nas palavras que lhe habitam e a partir desta aproximação, surpreenda com caminhos que jamais planejou.
Me pego chamando o mistério, pedindo que me queira bem. Que fortaleça em mim a chama da palavra quando ela pensar em desistir. Seja guia, mestre e principalmente, que ande ao meu lado. Me surpreenda.
“Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera”.
(Grande Sertão: Veredas – Guimarães Rosa)
Sempre, me surpreenda.
Com curiosidade e afeto,
Ana.