Amanhã,
Aos oito anos de idade machuquei feio minha perna na cerca de arame farpado. Motivo. Fuga de boi bravo. Talvez seja o caso de dizer que o boi foi provocado por mim, meus irmãos e primas. Ou não. O fato é que corremos o suficiente para ficarmos a salvo, mas no percurso, me enrosquei na cerca e isso foi, para dizer o mínimo, doloroso. De presente, ganhei uma bela de uma cicatriz na perna.
Aos quinze anos, eu tinha uma professora de química que detestava a minha turma. Hoje entendo que provavelmente esta mulher sofria um tanto nesta profissão, talvez tivesse problemas pessoais etc. O fato é que ela faltava nos dias que nos daria aula e avisava apenas de última hora, não havendo tempo hábil para encontrarem um professor substituto. Lá pela sexta vez que fez isso, eu propus uma rebelião. Me coloquei em frente ao portão da escola, barrando a entrada dos colegas e, no diálogo, convenci todos (quase, teve apenas uma que debandou) de que precisávamos de uma nova professora de química. O resultado: Fomos todos suspensos. E ganhamos uma nova professora de química.
Aos dezoito anos, fui morar na casa de pessoas que nunca havia visto na vida. Uma amiga de infância da minha mãe se ofereceu para me ajudar e, dividindo um quarto minúsculo com suas filhas, passei a primeira noite mais emblemática da minha vida. Estava ali em busca dos meus sonhos. E isso era absurdamente mais complexo e difícil do que a minha juventude era capaz de entender e sentir. Chorei. Até não ter mais lágrimas para chorar.
Aos vinte e dois anos, fui colocada diante de uma situação de emergência. Eleita a detentora das decisões, escolhi um caminho que hoje tenho plena consciência, foi o que salvou três vidas de um desastre. Infelizmente, a quarta, estava além do meu alcance.
Quando olho para este espiral de memórias, enxergo os pontos que se cruzam, características que se repetem e se reconhecem. Detalhes. Olhar para nossas memórias não é apenas reconstruir fatos, mas dar espaço para partes da história que ainda não estavam ali. É preciso tempo de vida vivida para ver o que se faz invisível.
Enxergo hoje a garota corajosa que fui. Lembrar é também reafirmar a presença daquilo que lhe pertence.
Memória é caminho.
Te lembra das esquinas que, já sabe, deve evitar.
Deixa pistas de como chegar nas autoestradas da vida.
Lhe faz companhia, quando o percurso se faz solitário.
Cura, na possibilidade de reescrever narrativas até então, consolidadas.
Acessar nossas memórias é uma forma de (re)construir histórias. Do passado ao futuro. Lembrar o que já foi. Sonhar o que será. Nesse grande espiral da vida, lembramos para dar sentido a existência.
Escrevo minhas memórias para não me esquecer de onde vim. Escrevo-as também, para descobrir onde vou.
Com curiosidade e afeto,
Ana
A memória é sem dúvida, uma das minhas obsessões literárias. Portanto, não é de se espantar que tenha uma oficina de escrita com esta temática. Uma das oficinas mais potentes que tive o privilégio de ministrar, razão pela qual a escolhi para ser a última do ano.
Espiral de memórias é um oficina que nos leva aos muitos caminhos do lembrar. Acesse este link para saber mais.
"Memória é caminho" Que lindo, Ana!
Admiro demais a sensibilidade da sua escrita! Me senti tão conectada com essa carta. Obrigada por nos mostrar um pouco mais da sua história e memórias de uma maneira tão bonita! ❤️