Olá apoiadoras queridas do Cartas para o amanhã.
Esta é a primeira edição extra e espero que gostem do conteúdo que preparei para vocês.
Em “homenagem” ao meu livro infantil recém lançado sobre as ambivalências do sentimento saudade, resolvi discorrer um pouco sobre este sentimento e suas tantas bifurcações.
Boa leitura!
Saudade. Um sentimento que adentrou minha vida nestes dois últimos anos sem qualquer planejamento. É possível que você já saiba que recentemente lancei um livro infantil – Ísis e a Saudade. Possível também que já tenha lido sobre como este tema chegou até mim, por isso, desculpas adiantadas caso esteja sendo repetitiva. É que o contexto importa e uma história no meio faz tudo ficar sempre mais interessante.
Carolina Michaelis diz que “Saudade é a lembrança de se haver gozado em tempos passados, que não voltam mais; a pena de não gozar no presente, ou de só gozar na lembrança; e o desejo e a esperança de no futuro tornar ao estado antigo de felicidade”.
Sequer passou pela minha cabeça pensar a saudade desta forma naquela manhã. Era nove horas e estava tirando uma criança de 2 anos e meio do parquinho para dizer que, naquele momento, atravessaríamos a avenida a nossa frente para que ela pudesse dizer adeus ao avô. Saudade não era algo plausível, o que reinava era o espanto. Quem diz a uma criança tão pequena que deve dizer adeus a alguém tão amado? Adeus. Não um até logo. Adeus de nunca mais. Para sempre.
Saudade do que? Seria meu pensamento se naquele momento, me dissessem que deveria refletir sobre este sentimento. Estávamos no meio da ponte. Entre a vida e a morte. A vida já não parecia mais habitar aquele corpo e a morte, ainda não ousava se apossar. Uma ponte longa e cheia de pregos pelo chão, obrigando uma passagem lenta e dolorosa.
A etimologia diz que o termo "saudade" provém da palavra latina "solitas", pela sua forma declinada "solitate(m)". Passou ao galego-português como "soedade" "soïdade" que deu origem a "soidade" e "saudade" em língua galega, "suidade" em língua mirandesa e "soidade" / "soudade" em língua portuguesa. Acredita-se que por influência de "saúde" e "saudar", surgiu a variante "saudade" que atualmente predomina em português.
Saudar algo que não quer esquecer. Saúde. Da memória, do tempo, guardado dentro da gente. Nem sempre as memórias são gentis, lembra-se de algo que quer esquecer. Não sinto saudades daquele hospital, de assistir a travessia da ponte. Entre a vida e a morte. Penso que provavelmente minha filha sequer lembrará de algo assim. Dizem que podemos ter memórias a partir de dois anos de idade. Confere isso? Não sei. Deveríamos poder escolher nossas lembranças, utilizar o espaço destinado a elas com precisão, deixar ela bonita igual feed de Instagram, mas talvez isso nos fizesse viver mais enganados do que já somos.
Na construção do termo "saudade", o vocábulo sofreu uma interfluência entre o estado de estar só, sentir-se solitário - oriundo de "solitarius" que por sua vez vem de "solitas, solitatis", possuidora da forma declinada "solitate(m)", e a associação com o ato de receber e acalentar este sentimento traduzido com os termos oriundos de "salute e salutate", que na transição do latim para o português sofrem uma síncope e perdendo a letra interna l, simplesmente abandonada, enquanto o t não desaparece, mas passa a ser sonorizado como um d. Um jogo de letras, um emaranhado de sentimentos. Saudades é por muitas vezes, um estar só, com suas memórias, com tudo aquilo que não pode mais tocar, apenas sentir as lembranças.
A saudade pode não ser apenas de coisas boas, penso enquanto lembro da minha filha se despedindo de um corpo já quase sem vida. Penso também que provavelmente esteja inferindo o que é bom ou ruim, usando minha métrica. Nunca me despedi de um avô em estado terminal. Como dizer se isto seria uma lembrança boa ou ruim? É possível que muitas pessoas, que não puderam se despedir de entes queridos, discorde de mim e digam que dariam muitas coisas para vivenciar um momento parecido. É possível.
Nosso cérebro é capaz de arquivar memórias como forma de preservação, assim como podemos lembrar apenas de partes boas de uma história e até mesmo criarmos eventos que não ocorreram na realidade, tudo isso para que não haja dor, um “sofrimento desnecessário”. A memória e saudade andam lado a lado, buscando de alguma forma acalentar o sofrimento, dar significado para tudo aquilo que se foi vivido e quer ser lembrado, seja porque foi bom, seja porque não volta mais.
Saudade é um sentimento típico dos mamíferos sociais: ocorre entre semelhantes, como em tantos primatas, na afeição dedicada ao homem no caso do cão, por exemplo. A saudade sugere a observação do conhecimento fundado na "imitação do outro" (como o pássaro que transmite melodias de uma geração para outra com fidelidade) e está incessantemente sob a ação de vozes internas, cheias de palavras, submetidas a discursos mentais cuja estrutura linguística, ou seja, o repertório, é ditado por nossos pais quando aprendemos a falar.
A forma como este sentimento chega até nós, além de ser totalmente influenciado pelo repertório de cada um, também é afetado pela cultura. A maneira que cada povo interpreta a morte, seja no sentido literal ou não, determina o sentir da saudade. Nem todos veem a morte como um fim, muitos interpretam como uma dádiva, transformando a saudade em uma benção, algo valioso para quem ficou e possui momentos para lembrar. Não atoa a palavra saudade tem tradução tão diversa entre as línguas, já que o olhar para este sentir é bastante diferente entre os povos também.
A distância, ou afastamento de quem se ama pode provocar efeitos psicológicos no organismo e desencadear reações que vão da sensação de angústia, tristeza, até o desenvolvimento de um quadro depressivo. Vivenciar a saudade nem sempre é fácil e muitos sucumbem diante da ambivalência que tal sentimento pode gerar, por isso o atendimento psicológico muitas vezes se faz necessário (ou obrigatório).
Saudar a vida. Talvez seja sobre isso. Embrulhar memórias e se dar de presente. Encerro esta primeira edição extra com um trecho do meu livro que fala um pouco sobre tudo que discorri até agora.
“Ísis por fim compreendeu
O sentir não é uma prisão.
Na saudade tem tristeza
Mas também tem alegria
E na mistura de tudo isso
É que o amor se faz canção”.
Com curiosidade e afeto,
Ana