Gatilho que chama né? #50
Sobre projeções, medos e folhas em branco aguardando as palavras chegarem.
Amanhã,
Isis vai para escola em 2022. Daqui exatos 6 dias para ser mais especifica. Fiquei um bom tempo dizendo por aí que esperava ansiosamente este momento, mas agora vejo que na verdade, não tinha a menor ideia do que realmente esperava. Estamos juntas, 24 horas por dia, desde seu nascimento e isso já aconteceu a quase quatro anos. Entrar nesta fase de rupturas e descobertas, para ambas, tem sido (já que a fase preparatória também faz parte do todo) uma montanha russa de emoções e eu não conseguiria passar por ela sem lhe escrever sobre minhas percepções das subidas e descidas deste brinquedo maluco chamado vida.
Perguntei para mim mesma no meu caderno de escrita matinal. Do que você tem medo? Especificamente sobre Isis e a escola. Foram doze linhas. Doze medos que tive coragem de colocar no papel. Desconfio que alguns tenham se escondido com medo de serem revelados, mas os que apareceram já foram o suficiente para me mostrar muita coisa. Projeções, medos fictícios baseados em zero vivência, medo da frustração. Acho mesmo que o chefe de todos é o medo do novo.
Nem sempre as borboletas no estômago são bem-vindas. O novo às vezes assusta. Não tem nada escrito ali, nem um quadro de aviso, uma nota de rodapé. É um papel em branco aguardando as letras chegarem. E o que vai ser escrito ali, ninguém sabe. É bonito dizendo assim. Mas na prática, requer coragem. Requer confiança. Requer fé em algo que lhe sustente para dar passos adiante, mesmo que não saiba para onde está indo.
Eu me vi incomodada com este papel em branco. Não só por estar em branco, mas por achar que as letras que serão colocadas ali podem ser iguais às que um dia foram colocadas no meu papel, na minha história. Gatilho que chama né? Eu tenho um bocado de histórias boas para contar da escola, principalmente o quão eu queria ir para a escola. Mas também tem as que contém os desafios. Eu morava na zona rural, na época em que haviam escolas nas fazendas. Não tinha pré-escola ou algo do tipo, entrava apenas com sete anos, direto no primeiro ano. Era uma professora para a sala toda, o que comportava do primeiro ao quarto ano, uma loucura. Cada fileira era uma série e a professora se desdobrava para repartir a lousa em quatro e atender a todos.
Eu era uma menina que fazia de tudo para agradar. Tudo mesmo. Acreditava que assim as pessoas iriam gostar mais de mim. Supririam a carência de afeto que habitava todos os meus ossos. Eu me sentia bem sozinha neste sistema em que eu mal podia ter uma professora para mim. Coitada, tarefa quase impossível. Diante de uma sala de filhos de trabalhadores rurais que trabalhavam muito, de sol a sol. Criança carente, ali era regra.
Esta foi a minha história. Não se assemelha em absolutamente nada com a da minha filha. Mas gatilho é isso. Não tem lógica. Nem piedade. Aparece do nada e joga um rio de sentimentos que se afloram, sem controle prévio ou tempo hábil de contenção. Ele simplesmente chega. Demorei um tempo para conseguir organizar o que se passava aqui dentro. Tudo na escola me incomodava. As funcionárias, a iluminação, o jeito com que nos olhavam. Estava colocando defeito em tudo, tentando achar algo que tapasse o incomodo visceral que se passava comigo.
Que bom que a gente às vezes se dá um crédito. E um tempo para organizar as dores e delicias de ser quem é. Depois de uma semana, conversando com algumas pessoas, eu consegui entender de onde vinha e porque estava doendo. Não faz deixar de doer para sempre. Mas coloca a dor no seu devido lugar. Lá na minha infância. Na minha história.
Não tenho uma moral da história. Muito menos conselho. É só a narrativa de uma mãe que por vezes mistura seu passado, com o presente da filha. Acessa partes que lhe habitam, que dói. Não é bom, nem ruim. É o que é. Em alguns momentos aprendo. Em outros, é só dor mesmo. A maternidade abre portas escondidas. Levanta tapetes e sacode poeira. E eu, tenho aprendido a falar sobre essas partes que descubro sobre mim. Sem muita intenção de agregar ou fazer sentido. Apenas me conhecendo um pouco mais.
Com curiosidade e afeto,
Ana.
PS: Tem bastante gente nova por aqui, sejam todes bem vindes! Eu amo receber respostas de vocês, de verdade. Então, se curtiu o que escrevi, quer contar um causo seu parecido, dar sugestões ou qualquer coisa que seja motivo para um bate papo, sinta-se sempre à vontade para me responder. É a troca que faz este espaço ser tão especial para mim.