Cartas para o amanhã

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Invejei que ela tinha tempo #62

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Invejei que ela tinha tempo #62

Sobre avalanches maternas e estagiárias em protocolos de repartição publica.

Ana Margonato
Apr 28, 2022
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Invejei que ela tinha tempo #62

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Amanhã,

Dia desses, estava no protocolo da prefeitura resolvendo uma burocracia qualquer, quando chegou uma moça e, sem que me desse conta, sua presença acionou um gatilho enorme que precisei de dias para mapeá-lo e entender de onde tinha vindo aquele incomodo gigante, uma dor que parecia abranger muitas camadas a ponto de me deixar deprimida.

A moça, visivelmente era uma estagiária. Na minha leitura, claro, não sei porque, mas sempre acho que estagiário tem cara de estagiário. Enfim, estava aguardando um documento ser entregue quando ela foi atendida, com uma quantidade significativa de papéis (típicos de estagiários). Me vi observando cada movimento dela. Seu sapato de salto alto, suas roupas, a forma como arrumava seu cabelo longo e impecável. Tudo me incomodava.

Estava à procura de um defeito. De algo que me fizesse não sentir o que estava sentindo. Inveja. Fui socializada a infância toda acreditando que sentir inveja de alguém é um sentimento horrível. Somente adulta entendi que não é um sentimento ruim, mas um sinalizador de algo em mim. Não é externo. Diz sobre meus processos, minhas dores, minha história.

Invejei.

Que ela estava sozinha enquanto eu estava correndo atrás de uma criança sem conseguir me comunicar minimamente com o atendente.

Que estava arrumada e maquiada enquanto eu tinha mancha de comida na blusa, com o penteado de quase sempre (um coque escondendo o cabelo por lavar) e uma sandália ótima para correr atrás de criança, mas nada atrativa no mundo da moda.

Que ela tinha tempo. Mesmo não fazendo ideia se esta informação é verídica ou não. Quando uma mãe de criança pequena olha para uma jovem arrumada, usando salto, com seus papéis em mãos e seu cabelo impecável, a sensação é de distanciamento. Estamos separadas por uma linha, invisível, que nos coloca em mundos absurdamente diferentes e quando esses mundos se encontram, o desconforto surge.

A maternidade é uma espécie de avalanche. Leva tudo que encontra pelo caminho num bolo só. Não separa a sua versão sem filhos da versão com olheiras e cansaço ininterrupto. Leva tempo para arrumar a bagunça. Juntar as peças antigas que vai manter, encontrar as novas que você sabe que está ali, mas ainda não tem intimidade. Encontrar a nova versão de si mesma é um trabalho árduo. Provavelmente algo para a vida toda.

E no meio deste processo todo, a gente encontra no outro, similaridades com partes nossas que a avalanche levou, que se perdeu de tal forma que talvez nunca mais reveja. É a dor de ver em alguém aquilo que um dia lhe pertenceu. Foi bom. Mas não existe mais.

Poderia dizer que é apenas um acontecimento comum na vida de qualquer pessoa. Afinal, quem nunca se sentiu nostálgico ao ver adolescentes vivendo seus processos não é mesmo? Mas é mais profundo que isso. A maternidade lhe tira a possibilidade de reaver certos papéis. É como se tivesse passado por um portal e assinado um termo de renúncia de inúmeras coisas que ficaram do lado de lá. Para sempre.

Você retoma muitas coisas que fazia antes, mas será absurdamente diferente. Seus olhos não são mais os mesmos. Seu corpo mudou muito, mesmo que não seja aparente. O mundo passou a lhe tratar de outra forma. Seu valor enquanto ser humano foi alterado. De substantivo comum, você passou a acessório. Você continua ali. Mas não está mais.

Talvez todas essas minhas palavras soem como uma língua incompreensível para alguém que não tenha filhos. É bem provável. Não pela falta de sensibilidade, mas falta de vivência ou mesmo repertório sobre o assunto. Decidi falar sobre, porque os buracos são muitos. Em mim e certamente em quase toda mãe que encontrar por aí. As lacunas, partes que não se encaixam, lugares que não cabem, papéis que não lhe pertencem mais são presença diária e montar esse quebra cabeça é, em sua maior parte do tempo, muito doloroso, seja porque processos de autoconhecimento são, por si só, difíceis de vivenciar, seja porque, se tratando de maternidade, são em sua grande maioria, bastante solitários.

Não falamos sobre isso (nós, sociedade). Cria-se uma ideia romântica de maternidade e é isso. É o que vende. Para as mães. E para o restante da sociedade, que cobra performances irreais de mulheres mães e as margeiam sem sequer notar. Nisso, vivemos processos complexos, isoladas, desprovidas de mãos estendidas e espaços de troca.

Acredito no poder da palavra. Nas mudanças que podem ocorrer através da comunicação. Trago minhas vivências como repertório para quem não vivencia a maternidade e como mão estendida, para todas que entendem cada palavra do que digo aqui.

Falo dos espinhos, porque as rosas são por si só, sempre o foco. Também as observo daqui e aproveito para sentir seu perfume. Minha escrita foi uma delas. Desabrochou depois que passei o portal. Mas isso não lhe protege de entrar em crise existencial (ou seja lá como podemos chamar tudo isso) caso encontre uma estagiária no protocolo de uma repartição qualquer. Esse, meu caro, é um risco que toda mãe está sujeita a correr.

Com curiosidade e afeto,

Ana.

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