Amanhã,
Sinto daqui o cheio de naftalina que a professora colocava na biblioteca da minha primeira escola. Um pequeno armário marrom na parede do fundo da grande sala, com três prateleiras onde era guardado nosso acervo que, embora não muito grande (algo em torno de uns 20 livros), era visto como tesouro.
O maior livro de todos se chamava A bolsa amarela, da Lygia Bojunga. Lembro que ficava na prateleira mais alta, com sua capa chamativa, uma grande bolsa amarela. Cobiçava aquele livro porque sabia que, se conseguisse lê-lo, era sinal de que havia realmente aprendido a ler e eu queria, há como queria saber ler.
Tinha oito anos quando encarei as 104 páginas. Lembro de ter sentido além de muito orgulho de mim mesma, um grande movimento interno perante a história. Mas eu só lembrava da sensação, não lembrava absolutamente nada do que estava escrito naquelas 104 páginas até que dia desses em uma oficina que ministrava, não sei ao certo porque, falei desse livro e uma pessoa curiosa com seu conteúdo perguntou sobre o que se tratava a história e eu, tive que ser honesta, não fazia ideia pois havia restado apenas a sensação de ser algo importante.
Corri pesquisar e tal qual foi meu espanto ao ler a sinopse:
“É a história de uma menina que entra em conflito consigo mesma e com a família ao reprimir três grandes vontades (que ela esconde numa bolsa amarela) - a vontade de crescer, a de ser garoto e a de se tornar escritora. A partir dessa revelação- por si mesma uma contestação à estrutura familiar tradicional em cujo meio? criança não tem vontade?- essa menina sensível e imaginativa nos conta o seu dia-a-dia, juntando o mundo real da família ao mundo criado por sua imaginação fértil e povoado de amigos secretos e fantasias. Ao mesmo tempo que se sucedem episódios reais e fantásticos, uma aventura espiritual se processa, e a menina segue rumo à sua afirmação como pessoa”.
Querer ser menino nunca me ocorreu, mas o restante está em meus poros desde os primórdios de minha existência aqui nesta vida. Nunca havia pensado em ser escritora, isso não era algo pensável. Queria ser jornalista, Glória Maria e suas viagens pelo mundo no fantástico de domingo à noite eram minha grande inspiração. A vida me levou para o direito para só depois me apresentar a escrita como uma profissão. No fim, todos esses quereres estão conectados a uma coisa em comum: Contar histórias. Minha paixão é pela história contada, descobrir isso foi revelador e apaixonante.
E nessa de contar histórias, a gente começa a olhar mais para a nossa. Sempre tive vergonha de contar que estudava em uma escola de fazenda, onde só tinha uma professora para quatro séries, cobra e sapo na sala de aula era coisa comum, o dia de lavar a escola era o mais esperado, e o dia do pão com salsicha também. Era muito boa na queimada (boa mesmo) e me vi em luto quando a escola fechou e tivemos que migrar para a escola da cidade, lugar de salas cheias, pessoas hostis e concreto por todos os lados. Sem contar que tinha que usar sapato, ir para a escola descalça andando pelo riacho e fugindo de boi bravo era nossa alegria diária.
Me envergonhei disso tudo por boa parte da vida. Minha infância não foi um case de sucesso. Não nos moldes ditados. Os livros que li passam longe da lista do que dizem que deveria ter lido para “crescer na vida”. Lia muito, lia o que tinha para ler na biblioteca e só sei que a grande maioria não está na lista dos “melhores”. Me senti menos por muito tempo. Talvez ainda tenha uma certa dificuldade em não me sentir. Mas há hoje uma consciência que me tira da individualidade e analisa o meu sentimento dentro de um grupo, e isso muda muita coisa.
Estou o tempo todo sendo apresentada a algum clássico que até ontem, não conhecia. Ok. Talvez nem vá conhecer, a lista de leituras é extensa e nem sempre estou interessada em muda-la porque alguém disse que “tenho” que. É que a vida da gente não é caixa fechada e os aprendizados não vem somente dos livros, do que dizem que é conhecimento. Hoje, sem romance, porque tinham sim suas dificuldades que não eram poucas, mas lembro com brilho nos olhos da minha história, de tudo que foge do comum, é meu tesouro, com um apesar de no começo da grande maioria das lembranças, porém, minha história, intransponível.
Escrever a partir da minha história é sem dúvida o maior presente que a escrita tem me trazido. É aquela sensação; mesmo que nada ocorra como planejado, mesmo que os sonhos se tornem ao final, em vão, eu terei aprendido a olhar as entrelinhas da minha história. E só por isso, já valeu a estadia.
Com curiosidade e afeto,
Ana.
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desde a primeira vez que soube um pouco da sua infância eu pensei: "meu deus, quantas boas histórias ela não deve ter pra contar?"