Amanhã,
Maya Angelou nos fala que você pode dizer muito sobre uma pessoa pela forma como ela lida com três coisas: Um dia chuvoso, uma bagagem perdida e os nós dos pisca-piscas emaranhados da árvore de Natal. Fui ousada e acrescentei um item nesta lista: Batidas de carro. Concluí que esta é uma forma bastante interessante de analisar como uma pessoa reage à vida.
No caso o objeto do estudo fui eu mesma e, para não dizer que foi este ato um tanto narcísico, observei também os outros; a vítima do meu erro de cálculo de distância e minha filha, a narradora dos fatos.
Aquariana raiz que sou fiz jus ao status, me enraiveci com os tantos ritos burocráticos do seguro. Mesmo que racionalmente tudo aquilo faça total sentido, como é chato ter que cumpri-los. Já a vítima, um moço bastante educado entrou no modo desconfiado. Mesmo eu repetindo inúmeras vezes que tinha seguro e que todo prejuízo seria ressarcido, ele decidiu ficar um bom tempo no local observando as lamúrias de uma pessoa em seu dia de estreia ao que chamam de sinistro.
Minha filha, que teve zero medo ou susto, decidiu observar de perto o estrago do carro e narrar minuciosamente o ocorrido, bem como o resultado dele. E, após horas de espera, na chuva, com sede e fome, me consolou, quando passei da raiva para a tristeza.
A vida é banal, as pessoas são comuns, concluo. E em meio a esta pacata existência, as coisas acontecem, fatos são narrados e de repente o que parecia não ter importância alguma, traz à tona a complexidade e a incoerência humana. Somos ótimos amigos e por vezes péssimos acolhedores de si; observamos o caos com curiosidade, apenas; confiamos o coração a um, enquanto desconfiamos da honestidade de outro.
A literatura, esta entidade que tanto nos presenteia, transforma, através daqueles que fazem da palavra um oficio, toda esta trivialidade em algo que vale a pena se debruçar. Nos entrega de bandeja A autoestrada do Sul, por exemplo, que nada mais é que Júlio Cortazar se inspirando no trânsito de um domingo qualquer sentido interior x Paris. O comum transformado em outra coisa, muito, muito maior.
Nos oferta as palavras de Isabel Alende, Patti Smith, Vivian Gornick e tantas outras e outros que transformam a vida na sua mais completa normalidade, em algo para se guardar com entusiasmo, nas esquinas da alma. Tudo isso porque a literatura é uma forma que nós, meros humanos, encontramos para dividir com o outro, o universo que nos habita.
Minha estreia no mundo dos protocolos e sinistros de uma seguradora me levou a análise do comportamento humano em mais uma situação cotidiana e continua sendo uma história comum, perfeitamente cabível no ordinário de cada dia. Mas quem sabe no que pode se transformar, se inserida no rol de histórias contadas por quem gosta de fazer das palavras uma grande dança boa de se dançar, até o amanhecer?
Na dúvida, conte a história.
Com curiosidade e afeto,
Ana.
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Fiz esta leitura de um pequeno trecho do livro Caderno proibido, um dos livros que me inspiraram na criação da oficina Caderno dos desejos. Começa dia 08/04, ainda dá tempo, só vem!!
Fico pensando quantas histórias não se perderam quando alguém pensou “ah, muito banal para ser uma grande obra”. Ora, qual grande obra nasce na certeza de que é a grandeza que será?! Nenhuma, eu diria. Toda grande obra nasce de alguém pensando “tenho isso aqui pra contar e vou escrever/cantar/pintar mesmo que ninguém veja”.