Não confie no narrador #74
15 segundos de vidas questionáveis
Amanhã,
Quando receber esta carta estarei muito provavelmente dentro de um ônibus rumo a Fake Férias – parte II (aos não entendedores da referência, clica aqui). Poderia utilizar palavras glamorosas sobre esta viagem, sempre há uma forma de deixar qualquer situação mais bela e mais interessante do que realmente é, mas resumo dizendo que a causa é nobre.
Não confie no narrador. O mundo instantâneo e mágico das redes sociais tem me mostrado que esta premissa, confere. Narramos o que realmente ocorre ou o que o algoritmo dita que entrega mais? Tem sido cada vez mais suspeita a vida das pessoas diante daquele quadradinho e ouso dizer que acredito em quase nada que vejo.
Não pretendia viajar novamente. Mal tive tempo de organizar os atrasos causados pela viagem anterior. Vivo em uma corda bamba, hora pende para o lado “alô, vida real, você precisa ganhar dinheiro”, hora pende para o lado “aproveita a infância da sua filha, você só tem o agora”. Com o andar cambaleante sigo tentando. Sinto que falho quase sempre, mas tento de novo.
Desta vez o lado do “alô, o agora” falou mais alto e resolvi levar a garotinha para ver a prima pessoalmente. Todo santo dia essas duas jantam juntas via chamada de vídeo. É lindo e triste ao mesmo tempo. Acho fantástica a capacidade humana de se adaptar as circunstâncias e tirar o melhor proveito delas.
Abro um sorriso quando ouço minha filha dizer “mãe, hoje eu não queria ver ela de vídeo, queria jantar com ela de verdade”. Lembro das tantas falas que ouço por aí de que as novas gerações “estão perdidas em razão da tecnologia”. Reviro os olhos. Gostaria de ter feito muitas chamadas de vídeo com minha avó. Uma senhorinha que não sabia ler, nem escrever seu próprio nome, mas que certamente seria capaz de conversar com alguém através de uma caixinha virtual. São tão poucas as memórias que tenho dela que me agarro a elas, temerosa de que se vão.
Ouso dizer que “os jovens de hoje” são mais ressabiados com o narrador. A tecnologia nos coloca diante daquilo que pode ser alterado, mostrado como bem entender. Um jantar via chamada de vídeo pode ser desligado a qualquer momento, sem qualquer constrangimento, o outro não está realmente ali. É um espaço de conexão, ao mesmo tempo que continua sendo distância e eles, os pequenos, sabem muito bem disso.
Vidas sorridentes, viagens, trabalho dos sonhos etc etc etc. Tudo isso também não está realmente ali naqueles 15 segundos. São projeções, no ângulo correto, no momento oportuno, no cenário criado para tal. Tudo parece perfeito. Uma narrativa feita para lhe vender algo, e principalmente, para que acredite, que é possível sempre comprar.
Não confie no narrador. E fuja, se lhe disser que tudo ali é real.
Com curiosidade e afeto,
Ana.
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