Amanhã,
Fiquei surpresa com a repercussão da carta publicada semana passada. A régua que utilizo comigo mesma é bem alta, escrever texto sem planejamento não costuma ser uma prática constante, porém, são eles, os menos planejados e mais livres que constroem maior conexão com as pessoas que me leem.
Refleti bastante sobre isso, as cobranças muitas vezes infundadas e exigentes demais. O fluxo natural da escrita costuma me levar para caminhos novos e surpreendentes e por vezes, tenho medo do resultado. O número de pessoas que me leem tem crescido cada vez mais e me pego travando, como se em algum momento fosse ser pega, “olha, ela falando besteira”. Quero que minhas palavras voem ao passo que corto suas asas, um rio de contradição que nado já faz um tempo.
Procuro uma margem para que possa encostar meus braços, descansar. A vida não parece ser feita de momentos de descanso, escrevo, entrego, me arrependo, recupero algumas palavras, as demais já foram. Como desdizer aquilo que não quero?
Me sinto tentada a, a partir de agora intitular meus textos como algo do tipo: NÃO LEIA ESSA CARTA. E na legenda: Não me responsabilizo pelos danos causados. É que falar das angústias, dos pedaços escondidos é por deveras difícil e absurdamente comum aos olhos de quem lê, por isso a identificação. Vivemos todos esses emaranhados de dor, delírios, desesperos, porém, poucos são os que falam. Por que? Como se a felicidade fosse dar estrelinhas douradas aos que negam a existência da ambivalência que é respirar, viver e morrer, concomitantemente.
Tento elucidar o que se passa aqui dentro após ter colocado no papel as últimas palavras, encerrado o que chamo de um livro que não tem nome, não no plano real, mas aqui dentro, ainda não sei nomeá-lo, pois sua autoria não me é exclusiva. Estou parada no entre, um espaço vazio, no meio. De um lado, aquilo que se cria, sai, do outro, o que resta, após não mais lhe pertencer.
Um espaço enigmático que pede um tanto de coragem e menos razão. Realocar histórias após ter dado contornos internos para elas é uma forma de cura, e também de novidade, algo novo sempre surge quando se revisita o passado, pois os olhos que agora observam, são outros e novos detalhes se apresentam.
Quando a Tássia Rebelo criou meu amuleto mágico, baseado em uma tiragem do tarô, fiquei com um determinado trecho ecoando aqui:
Criar em torno de uma história do passado é emoldurar o que vivemos para decorar a sala do presente.
Mas também tem algo de melancólico sobre o passado – por mais que o emolduremos, ele não volta. E o presente deve ser respeitado. É nele que vivemos. O presente é o anfitrião da casa e é o quadro em branco que vamos pintar para emoldurar no futuro.
Ao terminar meu romance, vi este quadro se formando, parte já preenchida, com tudo que veio até aqui, junto com o espaço em branco, que aguarda o que está por vir. Ficcionar a própria vida, plantar o real dentro da ficção. O que é seu e o que é da história que nasceu de ti? E não seria tudo a mesma coisa?
Cá estou novamente perturbando a lógica desta carta, tirando o senso estético do que “dizem que deve ser” uma crônica semanal. A sequência programada da escrita, do meu corpo, dos dias que se colocam a meu dispor, não tem sido linear. Desconfio que as palavras que me habitam estão organizando um motim, aos que me leem, elas sussurram “queremos revolução”.
Colocar esta que vos escreve, diante do mistério, terra de quem tem no peito certeza alguma, apenas um bocado de histórias para colocar no mundo, misturando o que é meu e o que me é dado, criando algo que ainda não nomeio, mas que há de ser nomeado, por aqueles que as leem, e ouvem sua canção.
Com curiosidade e afeto,
Ana.
Adorei as pistas do inconsciente deixadas no começo e no fim/no título e na despedida. Primeiro, o não-convite "Não leia essa carta" e, por fim o desejo final de encontrar seus leitores nas cartas que virão nos amanhãs "até a próxima edição". A vida é mesmo esse rio de contradições. Que bom que você aposta e suas palavras nos encontram, enquanto estamos igualmente imersas em nossas águas profundas.
Com curiosidade pelo porvir e afeto por nadadoras de águas revoltas, Nanda.
Oi, Ana, mais uma carta tua que fala comigo. Inclusive, minha crônica semanal fala um pouco disso também. Acabei de enviar e, acabo de ser tomada pelo espanto ao ler a tua. Acho que, na escrita, nós todas compartilhamos algum tipo de inconsciente né... E os temas, tão da nossa carne, são parecidos. Embora as palavras sejam diferentes, pois são escolhas da mente.
Eu não sei bem o que é uma crônica semanal. Procuro saber pouco para não limitar minha imaginação. Como disse Mário Quintana "o estilo é uma dificuldade de expressão" (Caderno H). Apesar das reprimendas do meu ego, eu escolho não ter estilo.
Com relação ao seu livro, os partos são assim mesmo. Demora um tempo para o corpo se adaptar à separação. Nosso psiquismo vai chegando aos poucos nesse lugar de clareza. Seu processo é bonito. Escrevi um livro de poesia. Está para chegar aqui em casa. Tenho me relacionado de forma ambivalente com ele. Enfim, sigamos. Obrigada por escrever. Até breve!
Andreza