Cartas para o amanhã

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Nossas trajetórias se cruzam, mas não se assemelham #53

anamargonato.substack.com

Nossas trajetórias se cruzam, mas não se assemelham #53

Sobre marcos de transição, dor e afeto.

Ana Margonato
Feb 17, 2022
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Nossas trajetórias se cruzam, mas não se assemelham #53

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Amanhã,

Pensei seriamente em não lhe escrever esta semana. Quando estou monotemática fico com a sensação de que ninguém mais aguenta ouvir o meu assunto do momento, mesmo sabendo que a maioria das pessoas nem sabe qual é o meu assunto do momento. Mas, aqui estou. Realmente gosto de escrever esta carta e, considerando o curtíssimo tempo que tenho tido para escrever neste mês, me pareceu uma boa oportunidade.

Isis está em adaptação escolar. Após quase quatro anos em casa, 24 horas, sendo cuidada pela mãe, eu, no caso, ela ingressou na escola. Estaria contando uma grande mentira se dissesse que não criei expectativas. A gente cria, fato. Principalmente quando se tratam de certos marcos na infância, desfralde, desmame, escola. Não tinha a menor ideia de como seria, mas imaginava um misto de choro com alegria.

Não rolou a alegria. Ficamos apenas com o choro, muita frustração, somado com medo e insegurança. Nada do que estamos vivendo é anormal (já disseram as terapeutas amigas que consultei porque né, sou dessas), ao menos não por enquanto. Esses marcos de transição não são difíceis atoa, existe ali um poder de transformação muito grande. Principalmente para o cuidador, no caso, eu.

Fiquei tão angustiada, mas tão angustiada que estava tendo falta de ar. Literalmente. Não é fácil assistir uma criança em sofrimento. Por mais que haja acolhimento, muita escuta e afeto. A dor está ali. São aqueles momentos em que a gente não pode evitar a dor, apenas acolher quem a sente. Acolhi ela, e percebi que a minha também estava latente, e esta dor não era sobre ela.

Eu queria muito ir para a escola. Chorava compulsivamente no portão de casa querendo acompanhar meus irmãos mais velhos. Na zona rural não tinha creche ou pré-escola, já entrava direto no primeiro ano. A vontade de pertencer pulsava em mim. Mas nem tudo é como se espera. Sofri muito bullying na escola. Meus primos eram maldosos comigo. Mas não foi isso que me marcou. A dor vinha do fato de que a professora não fazia nada para me proteger e por muitas vezes, riu junto com eles.

Dr. Gabor Maté, especialista e estudioso do trauma afirma que “Trauma não são as coisas ruins que acontecem com você, mas o que acontece dentro de você como resultado do que aconteceu com você”. O trauma ocorre porque não há um adulto que acolha esta criança e a faça sentir que não está sozinha diante do que está vivendo.

Uma escola que não escolhemos e que não podemos escolher. Uma professora com cara de poucos amigos. A direção que diz que acolhimento é falar para a criança que não precisa chorar. Diante deste cenário, me vi ali, e acabei por um tempo misturando a minha história com a dela. Mas hoje, vejo que nossas trajetórias se cruzam, mas não se assemelham.

Lembrei das palavras do Dr. Gabor porque, diante da minha impotência em protege-la das dores inevitáveis, senti que eu não seria o bastante. É provável que ela não tenha o apoio que deveria ter lá. São outros tempos, mas a educação ainda continua sendo massificadora e ante criança livre e feliz. Ela não terá muita coisa. Mas tem a mim. E talvez isso soe um tanto quanto presunçoso e ela discorde das minhas posturas futuramente. É possível. Mas eu vou morrer tentando dar a ela um ambiente seguro e que lhe faça se sentir amada, ouvida e acolhida. Pode ser que não seja o suficiente, mas eu terei feito o meu melhor.

A dor ainda está latente nela. Mas tem suporte para atravessa-la. Revisitei minhas dores de infância. Isto gera um incomodo muito grande. E dói também. Mas traz consigo cura, por isso digo que esses marcos de transição são tão intensos. Afetam todos os envolvidos. A infância é potência. Feliz quem tem a oportunidade de senti-la.

Com curiosidade e afeto,

Ana.

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