O dia em que o espermatozoide deu aquela piscadela para o óvulo #99
E a coisa toda aconteceu.
Olá olá!!
Passando aqui para lembrar que esta será a última carta republicada por aqui neste breve hiato criativo/descanso desta que vos fala. Semana que vem tem carta inédita e muitas novidades. Aguardem…
Amanhã,
O mundo que existe dentro de nós iniciou sua construção desde o dia em que o espermatozoide deu aquela piscadela para o óvulo e a coisa toda aconteceu. Ousaria dizer que foi antes deste encontro, mas adentraria águas mais profundas, então vamos nos concentrar a partir daí. Cada evento que ocorreu deste este fatídico dia foi se transformando nos tijolinhos que definem nossa visão de mundo, quem a gente se torna depois das experiências vividas.
Nasci e vivi quase 17 anos da minha vida na zona rural de uma microcidade no interior do interior de São Paulo. Possuo praticamente nenhuma referência da infância anos 80/90 da massacrante maioria dos adultos que conheço com a mesma idade. Enquanto meu companheiro e seus amigos davam final no Super Mário Word, eu carregava junto com meus colegas da escola na fazenda que estudava um latão de lixo de 50 litros cheio de água do córrego, relativamente próximo da escola, para lavarmos o chão. Sim, nós, crianças, éramos responsáveis pela limpeza de toda escola e confesso que no auge dos meus 7 anos isso era visto como algo normal e esperado.
Ouço histórias comuns da infância de amigos que envolvem museus, piqueniques no parque, cinema, shopping, a pracinha do bairro tal etc etc. Coisas que parecem ter feito parte da vida de “todo mundo” e por muitas vezes isto me causou muito incomodo. Tinha vergonha de falar sobre a minha infância, a discrepância era tão grande que me sentia uma figura caricata, digna de ser vista como simplória, sem nada de interessante a ser contado.
A mudança do olhar veio com a escrita. Sempre ela. Quando assumi que as palavras causavam em mim revoada das grandes, e que eu queria continuar sentindo ela até o final da minha vida, foi que a minha história se pôs na minha frente e me disse “agora me escreve!!”. Crônicas e mais crônicas foram brotando e eu fui conhecendo histórias de todos os tipos. Da tristeza ao encantamento. Tudo estava ali. No lugar que nunca havia me permitido estar.
Olhar para minha história como uma construção feita a partir de tijolinhos que foram formando quem hoje sou foi uma das coisas mais fantásticas que me ocorreu. Me conheci. Muita coisa fez sentido. Outras, passaram a doer menos. Memórias voltaram e pude simplesmente olhar para a menininha sonhadora e me orgulhar de quem foi e se tornou.
Hoje conto sem titubear que li praticamente a biblioteca toda da escola, mas que pouco conheci de literatura fantástica (alô Tolkien) porque não existia este tipo de livro lá e internet não era algo que tinha acesso. Comi pizza pela primeira vez aos 18 anos. Fui saber o que era um shopping aos 16. Ouvia as músicas do momento quando já não era mais o momento pois esperávamos um tio de São Paulo levar fitas gravadas e quando elas chegavam o sucesso era só lá em casa mesmo. Tomava guaraná no saquinho plástico com canudinho (essa eu desisti de tentar explicar como funcionava).
Somos frutos da nossa história e a grande beleza nisso tudo é que ela só termina quando chega ao fim. Estamos o tempo todo colocando novos tijolinhos, e porque não, aposentando alguns, jogando outros fora. A possibilidade de mudança é uma constante. Nossa casa interna está aí, sendo afetada o tempo todo pelas vivências que nos atravessam.
Nem sempre elas se transformam em algo novo. Mas as vezes, damos sorte, e rola uma reforma.
Com curiosidade, afeto e pés descalços,
Ana
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Ana, eu fico muito feliz em conhecer um pouco mais sobre a sua história - que merece e deve ser contada sempre!
Cada uma de nós é um Universo singular e nos expandimos a cada compartilhamento.
A sua coragem em expor um pouco mais de si abre caminho para que outras, como eu, se sintam confortáveis em apresentar um pouco mais da própria história.
Um grande beijo!
Sua história me tocou muito. Tive uma infância parecida. Sou de ascendência maxacali, minha avó mal falava português. Parte da minha infância foi no meio da natureza e assumir isso foi libertador.