O gozo da vida #106
E o gemido do mundo.
Amanhã,
Cresci sendo ensinada que carnaval é a “festa da carne”, pecaminosa. Aniversários são apenas dias comuns. Ano novo bom, é ano novo dormindo. Até as festas religiosas (as permitidas), continham ali altas doses de ponderação. Este foi meu repertório sobre aproveitar a vida durante metade do meu tempo aqui neste planeta. Me define? Não. Mas influencia, muito.
Não estou escrevendo esta carta para reclamar da minha família. Este jeito de olhar a vida é para eles herança, herdado também por quem veio antes e assim sucessivamente. Olho com curiosidade para esta grossa linha que vai sendo amarrada de geração em geração porque acredito, genuinamente, que esses fios possam ser cortados, quando deixam de fazer sentido e o tecido começa a incomodar.
Fiquei refletindo sobre tudo isso enquanto via stories de pessoas coloridas e seminuas no carnaval. Aquele brilho todo sem pudor algum me hipnotizava, ao mesmo passo que não encontrava ali, identificação alguma. Meus processos internos são longos, na maioria das vezes dolorosos e por vezes me consomem. Provavelmente eu nunca irei pular carnaval com um maiô e meia arrastão, mas talvez eu possa ensinar a minha filha que existe aí uma diversão boa de se aprender a cultivar.
O gozo da vida. E o gemido do mundo. Como este prazer chega até nós. No final, é sobre isso. Gozar a vida não é somente uma questão de experiências vividas, mas a capacidade de vivencia-las e senti-las permitindo-se o prazer de viver, na mais expansiva interpretação da palavra, o que inclui, o prazer alheio.
Me considero uma pessoa bastante otimista, que ri do caos (nem sempre, mas quase sempre) e sei o quão isto influencia na forma como vejo o mundo, nas decisões que tomo, enfim, em tudo. Pensar que talvez eu não saiba gozar a vida como gostaria, que tenho vergonha do gemido do mundo, me incomodou. Tanto, a ponto de estar aqui escrevendo esta carta como uma adulta mediana que nunca usou glitter nos olhos.
É possível que hajam diversas formas de se interpretar o que é gozar a vida? Sim, é possível. Mas continuo achando que a MINHA FORMA poderia ser mais colorida, mais leve e porque não, com mais gemidos de prazer. As linhas costuradas em nós são passíveis de se arrebentar, mas seus pedaços ainda ficam ali e pode ser que uma vida toda não seja o suficiente para uma nova costura.
Daí nascem as mais diversas ambivalências, os sentimentos que por vezes um dicionário todo não dá conta de explicar. Incoerências que não me definem, ao passo que dizem muito sobre mim. É um tal de vive, revive, muda, retroage, troca, refaz. Segue.
No final, otimista que sou. Confio nos processos. Por mais longos que sejam. Espero. Chegar o glitter, o paitê, o gozo. Há o gozo, alto e sem vergonha alguma. Como se deve ser.
Com curiosidade e afeto,
Ana
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Março é o mês das mulheres e também, da poesia (dia 21/03). Para comemorar isso tudo eu e Fernanda estamos fazendo um especial lá no Dialeto Materno, todos os dias teremos no feed uma mulher escritora dizendo o que é poesia em sua vida, poeta favorita, poema etc. Vem acompanhar que está uma belezura só!
Pois te digo que experimente quando puder, talvez você ame. Talvez não 😅 lá em casa também era proibido, mas depois foi liberado. De toda forma, acho que nunca me pegou. Esse ano, fiquei até feliz de estar longe. Os únicos stories que de carnaval que não pulei foi de uma ciranda de mulheres, lindo demais de ver.