Cartas para o amanhã

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Quem lava o banheiro dela? #63

anamargonato.substack.com

Quem lava o banheiro dela? #63

Leveza materna, banheiros lavados e Pix com 5% de desconto.

Ana Margonato
May 5, 2022
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Quem lava o banheiro dela? #63

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Amanhã,

Tenho uma relação nebulosa com o termo “leveza materna”. Muito utilizado nas redes sociais hoje em dia como um caminho para um maternar mais consciente e leve. Fala-se sobre leveza materna, englobando autoconhecimento, maturidade emocional, uma vida mais descomplicada etc. Tudo isso parcelado em 12 vezes, com juros e taxa administrativa. No Pix tem 5% de desconto.

Digo que minha relação é nebulosa porque gosto muito da ideia de ser uma pessoa mais leve. Acredito realmente que viver uma vida mais leve possa lhe trazer mais consciência no agora, presença e observações comportamentais que culminam em mudanças de postura e consequentemente, em uma melhor saúde física e mental.

Mas confesso que toda vez que vejo mulheres mães falando sobre esse tema na internet, a primeira coisa que passa pela minha cabeça é “Quem será que lava o banheiro dela?”, “Como é sua rede de apoio? Ela tem dinheiro para pagar por uma?”, “Ela pode escolher quem vai cuidar de seus filhos?”, “Ela precisa se preocupar em como serão pagos os boletos do próximo mês?”. Essas e muitas outras questões vão passando pela minha cabeça por um único motivo: A leveza não nasce da vontade em ser leve, mas da junção entre vontade (que tem tudo a ver com repertório adquirido) e oportunidade.

E para ter oportunidade é preciso muitas coisas. Coisas essas que a grande maioria das mães não possui. Amparo, condições dignas de vida e trabalho, divisão de tarefas domésticas e do cuidar, serviços públicos de qualidade e acessíveis etc etc etc. A lista é imensa. E as possibilidades de leveza, pequenas.

Quase todos os dias, enquanto corro por volta de 5:30hs, encontro uma mãe solo e sua filha, ambas saindo de casa já neste horário. A garotinha sendo levada para os cuidados de uma senhora que tem uma espécie de creche em sua casa e a mãe indo trabalhar. Vejo esta mesma senhora indo buscar a garota no ponto de ônibus no final da tarde quando retorna da escola, a mãe chega do trabalho depois que já escureceu. Nas vezes em que as cumprimento, a mãe costuma me olhar com um olhar nada simpático e por vezes não responde meu bom dia.

Você teria coragem de dizer a esta mãe que ela precisa de mais leveza na vida? Me sinto por vezes desconcertada. Estou ali, praticando atividade física enquanto minha filha dorme, tendo toda a manhã para usufruir da minha atenção enquanto ela e a filha mal se veem a semana toda. Embora eu não viva uma realidade financeira muito diversa da dela, existem distâncias gritantes em nossas realidades. E isso interfere profundamente na forma como se vê a vida.

A ideia aqui não é dizer que refletir sobre a forma como olhamos e nos colocamos diante da vida seja ruim. Mas precisamos ter consciência de que leveza no maternar é ainda, um papo bastante elitizado, que não conversa com a realidade da grande maioria das mulheres mães. Quando falamos dos benefícios de ser uma mãe mais leve, estamos falando com qual mãe? Com aquela que passa 12hs fora de casa para sustentar a filha? Acho que não...

Já dizia Carolina Maria de Jesus “As crianças ricas brincam nos jardins com seus brinquedos prediletos. E as crianças pobres acompanham as mães a pedirem esmolas pelas ruas. Que desigualdades trágicas e que brincadeira do destino”.

Uma vida mais leve, com filhos ou não, está intimamente ligada ás condições que estão postas à mesa. Quando falamos de leveza, sem falar de políticas públicas e classe social, trazemos para o campo individual a responsabilidade de tornar a vida um lugar mais agradável de se viver. A famosa meritocracia. “É só querer que consegue”.

Além de bastante cruel, não é real. Cuidar da saúde física e mental requer condições. Ferramentas que só se constroem no coletivo, mediante políticas públicas. No olhar para o outro além da vontade, do querer. A forma como nos relacionamos com nossas crianças e conosco é resultado de todo repertório construído até aqui.

Sonho com o dia que falaremos sobre autoconhecimento, leveza na maternidade etc como forma de melhoria na qualidade de vida, tudo isso dentro de uma sociedade que já supriu as necessidades básicas das mães e crianças que ali vivem e agora quer ir além. Expandir repertórios e melhorar a qualidade de vida de quem já tem o básico garantido.

Falar sobre uma maternidade leve é importante. Lutar para que todas as mães tenham acesso a ela, é primordial.

Com curiosidade e afeto,

Ana.

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1 Comment
Marcos Rodrigues
May 6, 2022Liked by Ana Margonato

Todo esse movimento materno baseado em positividade e que desconsidera as condições sociais e luta de classes é apenas Fetichismo.

Parabéns pelo seu texto, que fala isso com outras palavras!

É somente em uma sociedade que não esteja baseada em lucro, que as classes não existam mais, é que se poderá concretizar realmente para todos uma educação e formação de laços familiares e de infância realmente saudáveis e dignos.

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