Resolvi aceitar. Meio por desespero, e talvez uma pontinha de esperança #67
Viagem de ônibus, desespero em forma de suor e a corrida para alcançar a tal da humanidade.
Amanhã,
Próximo do meu aniversário deste ano, lá em fevereiro, tomei uma decisão. Iria passar o dia que completaria meus 365 dias em volta do sol na casa dos meus pais, lá na roça, longe de tudo e de todos que habitualmente compõem esta data ano a ano. Um misto de vontade do novo, diferente, com a necessidade de quietude, e também o fato de que amo aniversários e gostaria que alguém que não fosse eu organizasse algo por mim no meu, e isso quase nunca aconteceu, e eu resolvi desistir de ficar esperando acontecer.
Resolvi que faria a viagem de ônibus. Nunca havia viajado de ônibus com a Isis, mas não vi aí nenhum fator que considerasse preocupante. Pesquisei as regras da viagem com criança e tudo certo, até cinco anos não precisa comprar passagem, só não tem direito a uma poltrona. Fevereiro ainda estávamos em uma fase mais reclusa da pandemia, certamente o ônibus estará vazio e terá lugares vagos, pensei com meus botões. Na compra da passagem, nenhum lugar vendido, eu estava certa, pensei novamente. Segui tranquila e despreocupada, aguardando a viagem.
Chegamos na rodoviária bem no horário e imagina a grata surpresa que tive, quando entrei no ônibus e ele estava praticamente LOTADO. Senti minha espinha gelando, aquele suor típico de quem se enfia em uma grande enrascada começou a surgir descontroladamente embaixo do meu braço e me vi tendo dificuldades para respirar embaixo da minha pff2.
Sentei no meu lugar de destino e não demorou nem 2 minutos para a pessoa que comprou a passagem ao meu lado chegar. Olhei para a poltrona de trás, que tinha uma moça desacompanhada e pedi se poderia trocar de lugar comigo. Topou e me sentei em um lugar que não tinha certeza se teria logo mais um acompanhante também, mas resolvi arriscar.
Ônibus saiu e logo parou na cidade vizinha, me vi, novamente, suando frio, esperando que nenhuma daquelas pessoas que guardavam suas malas tivessem comprado aquela poltrona que Isis já havia tomado posse, derramado suco e todo tipo de farelo de comidas que ela conseguiu pedir em tão pouco tempo de viagem. Me vi literalmente rezando, quase em voz alta para ver se a santa me ouvia melhor. O que não surtiu efeito algum.
Uma senhora mal-encarada parou na minha frente e anunciou que aquele era seu lugar. Eu não podia dizer que estava errada, embora tivesse vontade. “A senhora poderia se sentar nesta poltrona vizinha que está vazia? ”. Me olhou com um olhar do tipo “o problema é seu” e respondeu um categórico não. Percebi que todos no ônibus nos olhavam e visivelmente estava rolando ali um julgamento daqueles com a manchete “Extra extra, mãe sem noção que não comprou passagem para a criança quer um lugar para sentar a menina que está grande demais para viajar horas no colo”. Não tinha argumentos para aqueles olhares exceto o fato de que não havia previsto nada daquilo. Eu havia cometido um erro e naquele momento, meu corpo era pura vergonha e sentimento de inadequação, a famosa vulnerabilidade.
Um senhor na fileira de trás, que provavelmente estava acompanhando a minha angústia e talvez até sentindo o cheiro dela, me falou que trocava de lugar comigo. Não sabia se isso iria piorar ainda mais a situação ou não, afinal, vai saber que tipo de pessoa poderia adentrar aquele maldito ônibus e se sentar na poltrona vizinha a ele. Resolvi aceitar. Meio por desespero, e talvez uma pontinha de esperança.
Trocamos de lugar. Segui o restante da viagem suando frio a cada parada e tendo sorte em todas elas. Me julguei em cada minuto que passei naquele veículo “como pude ser tão ingênua, que falta de noção”. Este foi o pensamento mais simpático que tive em relação a mim mesma durante todo o trajeto. Fiquei triste e este “erro” me tirou o brilho da viagem, que era inédita para nós duas, naquele formato.
Planejamos as coisas. Esperamos que tudo saia como o esperado, calculado. E quando isso não acontece, é difícil trilhar um caminho que nos leve até nossa humanidade. Demorei dias para alcança-la. Recordei que faziam muitos anos que não viajava de ônibus, e as coisas haviam mudado muito desde então. Uma pandemia na conta cortou muitas linhas e ter apenas uma opção de horário para aquela rota faz ônibus ficarem lotados. Eu não sabia disso. Não precisava saber. Tudo bem não saber.
Não podemos errar. Este é o recado do mundo, desde o momento em que saímos do ventre de nossa mãe. Mesmo que isto seja algo tão comum e que aconteça com todos, sem exceção, muito mais vezes do que somos capazes de admitir ou sequer, perceber. Muitos buscam alguém para culpar, outros se fecham em seu casulo e batem o chicote imaginário em suas próprias costas. Todos se calam. Também não é permitido falar que errou.
Certamente que, na próxima viagem que fiz com Isis de ônibus, comprei duas passagens sem nem pestanejar. E claro que, neste dia, o ônibus tinha muitos lugares vagos porque sacanear as pessoas é passatempo favorito do universo. De toda forma, aprendi com meu erro, gostaria apenas de não ter sofrido tanto com ele.
Lhe contei esta longa história porque me recordei dela esta semana, diante de outro erro e acredite, ela me fez sofrer menos. Alcancei minha humanidade bem mais depressa desta vez. Talvez te ajude da mesma forma, ou quem sabe ainda, no próximo erro, que hora ou outra virá, ela esteja caminhando do nosso lado. Imagina só. Seria realmente algo bonito de se ver e sentir.
Com curiosidade e afeto,
Ana.
Confesso que estou precisando voltar a morar no interior. Esse negócio de pegar trem lotado às cinco e meia da manhã não é muito prazeroso. Sinto, quase que o tempo todo, uma sobrecarga descomunal. Além disso, está chegando a hora de fazer as pazes com o meu passado.
Ana, senti daqui a sua angústia. Ainda bem que uma pessoa cedeu o lugar. E a minha conclusão: o mundo precisa ser urgentemente mais gentil com as mães. Sinta-se abraçada e obrigada por dividir essa história num texto que nos faz pensar.