Esta edição era para ser exclusiva aos que me apoiam financeiramente, porém, me senti impelida a escrever sobre um tema que acredito não ser um assunto privado, pelo contrário, deve ser expandido em seus mais diversos aspectos. Contudo, não deixarei de enviar exclusividades as pessoas mais maravilhosas desse mundo, vulgo, minhas apoiadoras. Até domingo apoiadoras (e quem sabe não surge um apoiador aí) receberão na caixa de e-mail um vídeo no qual falo de forma mais intimista (ainda) sobre minha relação com o tema e as autoras que cito na carta, bem como a indicação de outras leituras que se entrelaçam na temática. Vamos a carta!
Amanhã,
Eu devia ter por volta de uns sete anos, ou menos, não sei ao certo precisar. Avistei meu pai saindo de casa, rumo ao chiqueiro dos porcos, com uma faca reluzente em suas mãos. Era a faca mais afiada da casa e todos sabíamos disso. Ele usava para abrir a barriga dos peixes, cortar as partes semidesmembradas das capivaras após a caça, enfim, uma faca que preludiava a morte.
Num impulso não previsto, comecei a segui-lo furtivamente. Quando entrou na última repartição do chiqueiro, me escondi atrás da grade da primeira repartição. A visão não era das melhores, porém, perto o suficiente para ouvir os gritos do porco, após levar a primeira facada. O choque foi tão grande que sou capaz de ouvi-los como se fosse hoje. As lágrimas surgiram involuntariamente e sem perceber, chorava alto. Três facadas, e o porco permanecia vivo, gritando desesperadamente. Meu pai sem entender a luta travada, olhou ao redor e ao me avistar gritou coisas das quais não me recordo, lembro apenas de ser arrastada de lá pelo funcionário dele.
O porco não morre quando alguém tem pena. Foi o que disse depois que o grande ciclo de horror havia se encerrado (com a fatídica morte do porco). Após este episódio, fui proibida de me aproximar dos locais em que animais seriam mortos e assim, a vida de todos menos a minha e a dos animais se tornou mais harmônica. Deste dia em diante, desenvolvi verdadeiro pavor em ver carnes cruas. Me recusava a realizar qualquer preparo e após come-las, me sentia pesada e absurdamente culpada.
Aos trinta anos de idade, acontecimentos nada explicáveis ocorreram em minha vida (alguns chamam de magia, quem vai saber) e, compreendi que não precisava comer animais, simples assim. Um grande choque para uma família que tem toda sua cultura embasada na subjugação de outras espécies, porém, a superação ou ao menos aceitação, veio com o tempo. Escrevo já a alguns anos e só agora senti internamente, o espaço necessário para colocar em palavras algo que me soa bastante intimista e, confesso, que me gera um certo temor de rejeição. Falar sobre a relação humana com outras espécies é questionar muitas estruturas sólidas na nossa cultura e isso, é um tanto quanto complicado de se fazer.
Em É perigoso escrever, Olga Tokarczuk trouxe um ensaio que nomeou de “Máscaras dos animais”. Iniciou dizendo:
“Para mim, é mais fácil suportar o sofrimento de um ser humano do que o sofrimento de um animal. O ser humano tem uma posição ontológica própria, elaborada e anunciada aos quatro ventos, e assim constitui uma espécie privilegiada. Tem cultura e religião para o apoiarem no sofrimento. Tem suas racionalizações e sublimações. Tem Deus que, enfim, o salvará. O sofrimento humano tem sentido. Para o animal, não há nem consolo, nem alívio, porque não existe salvação que o espere. Não há sentido. O corpo do animal não lhe pertence. Ele não tem alma. O sofrimento do animal é absoluto, total”.
Sempre me considerei uma pessoa estranha. Fugitiva dos padrões e, ao contrário da grande maioria das pessoas tidas “excêntricas”, nunca vi isso como algo para se orgulhar. Sou o que sou e por vezes, mesmo que raras, entendo de onde vem certas características que me diferem de boa parte da sociedade. Ao ler este ensaio de Olga, algo se elucidou aqui. Sou mulher, o que me coloca na posição de lutadora ferrenha de meus míseros direitos conquistados por gerações e mais gerações de outras mulheres que vieram antes de mim. Me compadeço com os animais pois tenho na boca o gosto amargo da luta pela propriedade do meu próprio corpo.
Entender as motivações que nos levam agir de determinada forma é expansão de repertório, nos impulsiona em direção a uma posição reflexiva. E pensar nosso lugar no mundo e a nossa insignificância, bem, é um tanto quanto difícil e pode também ser libertador.
Falo aqui das minhas motivações e o que me leva viver a experiência da existência neste planeta como uma humana que se considera em pé de igualdade com as demais espécies pois não tenho a menor pretensão em criticar a vivência de ninguém, muito menos apontar algo como certo ou errado. Como disse anteriormente, as coisas são o que são, no nosso caso, totalmente moldadas pela nossa cultura, o que torna interessante ler uma escritora, ganhadora do prêmio Nobel que tem como uma de suas obsessões literárias um tema tabu: o direito dos animais.
Em Sobre os ossos dos mortos, a grande essência da história é a relação humana com as demais espécies e a forma como nós nos portamos diante disso. Foi aí que entendi este assunto como uma obsessão literária da autora. Entrei em sua escrita no escuro e a surpresa foi um misto de satisfação e muitos questionamentos. Uma obsessão literária que é também uma questão política, cultural, moral. Adentrar territórios coletivos através do individual é por si só um grande desafio, em temas espinhosos então, há de ser feito com maestria, o que, ao meu ver, é algo que Olga sabe fazer muito bem.
“- A senhora sente mais pena dos animais do que das pessoas. – Não é verdade. Sinto pena de ambos, de modo igual. Contudo, ninguém atira contra pessoas indefesas – disse ao funcionário da Guarda Municipal naquela mesma noite. – Ao menos não nos dias de hoje – acrescentei. – Sim, é verdade. Somos um estado de direito – o guarda confirmou. Pareceu-me bondoso e pouco saga. – Os animais mostram a verdade sobre um país – eu disse. – A atitude em relação aos animais. Se as pessoas tratarem os animais com crueldade, não adiantará de nada a democracia ou qualquer outra coisa”.
Acredito que, escrever sobre um tema que lhe move é ter acrescido nas palavras algo além do que é possível ver, apenas sentir. E, sem saber explicar como, somos profundamente afetados por cada frase que se joga diante de nós. Os livros de Olga fizeram isso comigo, porém, preciso confessar, embora tenha encontrado em suas palavras muitos caminhos para entender a minha relação com outras espécies, faltava algo. E esse vazio me guiou ao encontro de outro livro.
Quando iniciei a leitura de Escute as feras, de Nastassja Martin, definitivamente, não estava preparada para o encontro que se sucedeu. Uma antropóloga que narra seu fatídico encontro com um urso, no qual milagrosamente consegue sair viva, porém, não inteira. Uma grande saga de hospitais e cirurgias. Um livro narrativo sobre acontecimentos exóticos, pensei, até me deparar com as muitas reflexões que a autora passou a ter após este encontro que trouxe mudanças profundas em sua vida.
“Abro os olhos. A respiração dos meninos é constante, ainda é noite. Dária está deitada ao meu lado, ela me observa, de olhos abertos. Você sonhou, ela sussurra. Sim. O que você viu desta vez? Cavalos, centenas de cavalos na neve. Bom, ela. Os cavalos são sempre um bom sinal. Eles não estão longe, falam com você. Eles não disseram nada, respondo. Não é com palavras que eles falam, porque você não os teria entendido. Se você os viu, estão falando com você.
*
Penso no Clarence, o velho sábio gwich’in de Fort Yukon, no Alasca, meu amigo e precioso interlocutor durante os anos em que morei em seu vilarejo. Sempre o observei com olhar entretido quando ele dizia que tudo era constantemente “gravado” e que a floresta era “informada”. Everything is being recorded all the time, ele repetia. As árvores, os animais, os rios, cada parte do mundo guarda tudo o que se faz e tudo o que se diz, e até mesmo, às vezes, o que se sonha e o que se pensa. Por isso é preciso prestar atenção nos pensamentos que formulamos, porque o mundo não se esquece de nada, e cada um de seus elementos componentes vê, ouve, sabe. O que aconteceu, o que se sucede, o que se prepara. Existe um sinal de alerta dos seres exteriores aos homens, sempre prontos a extrapolar suas expectativas. Além disso, cada forma-pensamento que depositamos fora de nós mesmos vem se misturar e se acrescentar às antigas histórias que informam o meio ambiente, bem como às disposições daqueles que o povoam.
Segundo Clarence, existe um sem-limites que aflora à superfície do presente, um tempo do sonho que alimenta de cada fragmento de história que continuamos a nele agregar. Há no mundo uma latência e uma ebulição, semelhantes à lava que espera sob o vulcão até que alguma coisa a force a sair da cratera. É precisamente por isso que Dária e Vássia abaixam a voz e sussurram na alvorada dentro da iurta sonolenta quando contam seus sonhos um ao outro. Você tem medo de acordar os outros?, pergunto certa manhã. Não, não quero que eles nos escutem, lá fora, responde Dária”.
Algo aqui dentro ebuliu. Escute as feras é um livro sobre a existência, do todo e o quão temos consciência disto. Comer ou não comer animais é apenas uma partícula do grande estranhamento interno, ainda pouco nomeado. Olhar nossa relação com esse todo é abrir espaço para outras linguagens e consequentemente, outras formas de ser e estar. Um mundo vivo e pulsante se faz presente ao nosso redor, e por razões muitas, tapamos os olhos, como se aqui estivéssemos sozinhos.
“Ivan diz que só mesmo os humanos acreditam que fazem tudo certo. Só os humanos dão tamanha importância ao que os outros pensam deles. Viver na floresta é um pouco isso: ser um ser vivente em meio a tantos outros, oscilar com eles”.
Constantemente estamos nos cercando daquilo que nos é familiar. Por proteção. Medo. Uma lista extensa de motivos sentimentos que, na incapacidade de encará-los, buscamos formas de ressignificá-los. Criamos grandes centros no qual a humanidade é o foco. Excluímos a existência de tudo que nos cerca, a natureza se torna uma coadjuvante da história. Fazemos muito barulho, para que apenas o que é humano seja ouvido. Silenciamos os sussurros de quem aqui também habita. Fingimos que tudo mais, externo, é apenas um sonho.
Porém, esquecemos que os sonhos, não nos são exclusivos. Eles adentram o território do todo, se entrelaçam no grande coro de vozes que habitam o mundo e que podem facilmente serem ouvidas, se tiver coragem, de ir além dos muros da humanidade.
Com curiosidade e afeto,
Ana
“Como se esconder daquilo que deve se unir a você?
(desvio da modernidade)”
René Char, 77, Folhas de Hipno
O que tenho visto por ai:
Uma grande conversa que vale a pena ser assistida muitas vezes.
É a terceira temporada, e continuo ainda mais apaixonada por esta série.
Estou lendo este livro aqui.
Uma pessoa que fala muitíssimo melhor que eu sobre nossa relação com o mundo.
Encantadíssima com isso aqui.
tambem sou vegetariana e amei ler seu texto :)
<3