Cartas para o amanhã

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Vamos falar sobre o que então? #69

anamargonato.substack.com

Vamos falar sobre o que então? #69

Titanic, a ditadura do comportamento e até a última gota da laranja.

Ana Margonato
Jun 16, 2022
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Vamos falar sobre o que então? #69

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Amanhã,

Refletindo aqui sobre o que iria lhe escrever esta semana concluí que se você recebesse mais uma carta falando sobre trauma e assuntos relacionados (sim, eu sei ser monotemática), iria deixar de me responder. Ou pior, poderia realizar o grande medo de qualquer pessoa que escreve. Deixar de ler minhas cartas. Confesso que fiquei um pouco frustrada pois ainda tinha tantas coisas por falar sobre traumas e suas nuances, mas prometo deixar este assunto para cartas futuras.

Vamos falar sobre o que então?

Tenho evitado ler notícias. Não me dado tempo para lê-las na verdade. Insiro urgências na minha vida como realizar o remendo de 12 peças de roupas aleatórias, para evitar o cheiro de sangue saindo do meu coração ao olhar o mundo pelas páginas de um jornal. Ainda mais sendo brasileira. Sei que está batido dizer “não há realização pessoal que supere o mal-estar coletivo que este país causa”. Mas é isso, não há. O que fazer com este sentimento? Como se abster, física e emocionalmente, de forma consciente, deste Titanic, vulgo Brasil, que bateu no iceberg e já começou a afundar.

Pensei em lhe contar da vez que fiz um retiro para jovens garotas que querem ser feiras (não, eu não queria ser freira) mas lá estava eu. Ou talvez sobre alguns fatos estranhos, ou poderiam ser chamados de “milagrosos”, que me ocorreram nas circunstâncias mais aleatórias possíveis. Mas não me sinto à vontade em contar nenhuma história engraçada. Sinto como se estivesse fazendo algo errado ao pensar na possibilidade de escrever um texto que parece ser de uma pessoa que não está a bordo do Titanic.

Mas também não quero falar de sua queda, de como o capitão foi um dos principais responsáveis pela colisão e como está cheio de novos candidatos ao cargo prometendo um remendo no fundo do navio com Super Bonder. Não quero. Não hoje. Não nestas semanas que meu humor tem estado péssimo e tenho me irritado absurdamente com isto. Detesto quando estou com nuvens cinzentas sob minha cabeça. Mas elas vêm. Assim como em algum momento, se vão.

Sinto às vezes como se estivesse em um julgamento, no qual minhas palavras podem, literalmente, serem usadas contra mim. Longe de mim ser saudosa com o tempo em que as pessoas (em especial o clássico homem branco) saía falando asneiras por aí e ninguém sequer falava sobre. Continuam falando (eles podem, afinal), mas hoje, ao menos, gera um rebuliço e com sorte, perdem um pouquinho deste poder.

É como se fosse um acordo invisível. Conforme as coisas vão acontecendo a sociedade vai se estruturando para que, naquele momento, x comportamento seja esperado de você. Escrever sobre qualquer coisa que se destoe dos tópicos permitidos pode lhe causar banimento ou o título de alienada. Não que muitas pessoas não possam ser/estar alienadas, provavelmente todos somos/estamos em algum momento ou aspecto da vida.

O fato é que, isto, a longo prazo, tem me feito sentir que estou uma espécie de 1984*. Com a sensação de que a qualquer momento vou ser julgada como uma “péssima brasileira” porque não compartilhei os stories que todos estavam compartilhando ou porque resolvi contar aqui uma história engraçada em mais uma semana de tristeza e caos neste país.

Complexo? Bastante. A linha entre se alienar e se abster por uma questão de sobrevivência é muito, muito tênue. Não tem uma resposta correta. Acredite, eu já busquei bastante por ela. As pessoas reagem de forma muito distinta as mais diversas situações e, não sei se criar uma “ditadura do comportamento” seja a melhor forma de se criar empatia e consciência de classe nas pessoas.

Tem que se posicionar? Em muitos momentos é essencial para que os diálogos se expandam, haja voz para as muitas pessoas que não as tem, possibilidades de mudança. Mas tem que fazer isso o tempo todo? Se ouviu na padaria uma frase escrota tem que brigar com o caixa 6:30hs da manhã para não receber o título de alienada? Se participar de um evento literário tem que levar a bandeira do partido que apoia para mostrar que você é uma boa cidadã? No parquinho, tem que gastar a meia hora de brincadeiras com a criança tentando convencer as mães das outras crianças de que o discurso do capitão do navio de “não tinha como prever o iceberg” não faz o menor sentido. Talvez uma tentativa seja válida, mas depois da segunda o parquinho começa a ficar aversivo.

Como mede o que é possível fazer e o que vai além do que você dá conta se o mundo pede mais e mais e mais. Estamos caminhando para o colapso. Físico e mental. Ensinados a espremer além da última gota e usar o bagaço que sobra para fazer alguma coisa que possa ser ofertada à sociedade, vamos definhando, sumindo diante do “preciso mostrar que estou aqui lutando”. Autocuidado foi um termo criado por ativistas mulheres a várias décadas atrás para demonstrar a necessidade do cuidado, enquanto pessoa, que precisa de descanso físico e mental para seguir lutando por uma sociedade melhor, mais saudável. O capital foi lá, se apropriou do termo e nos deu como “presente” máscara de argila, esmalte na unha e carga de trabalho de 12horas diárias.

Talvez pareça que estou aqui misturando as coisas. É que tudo se conecta. O sistema nos leva a precarização do trabalho, no mesmo passo que somos cobrados de um posicionamento em absolutamente tudo. As políticas públicas sendo esculhambadas e cada vez mais, “cada um por si”, vira a solução. Não há pessoa que dê conta. Não há. É preciso olhar o macro. De onde estão vindo os tiros. São muitos. Mas os de canhão, são do capitalismo.

Hoje é feriado e definitivamente, gostaria que minha mente inquieta me proporcionasse um descanso, mesmo sabendo que isso não é possível. Mesmo que ela deixasse, sou mãe, autônoma e da classe trabalhadora. O combo está completo.

Mas o que me resta nesta vida, senão um pouco de inocência, esperança, e uma pitada de ilusão. Se eu não me posicionar sobre algo hoje, é porque da laranja, não resta mais nem a casca.

Com curiosidade e afeto,

Ana.

*1984 – George Orwell

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