A investida do tempo #105
Entendi. O prazer que tomou meu corpo foi na verdade, satisfação.
Amanhã,
Meses atrás estava em um parque de diversões itinerante com minha filha, quando avistei uma antiga colega de estágio na fila da roda gigante junto com uma garotinha que parecia ser sua filha. Com um olhar profundamente cansado, sorriu para mim e eu, retribui o sorriso que mais parecia uma linguagem subliminar materno que traduzido seria algo como “te entendo, também subi neste barco”.
Sou escritora, observar pessoas e cenas é algo que faço inconscientemente, mas neste dia em especial estava observando seu envelhecimento. De uma forma estranha e confesso, prazerosa, me senti bem ao ver que o tempo também a havia visitado. Que feio isso! Me repreendi. Me envergonhei do sentimento que me apossou, mas ele se manteve ali, como um lembrete de que as marcas da vida se desenham em todos, principalmente, nas mães.
Neste último final de semana levei minha filha ao circo e mais uma vez, um daqueles encontros com pessoas que a muito não via. Uma antiga colega de cursinho com seus dois filhos pequenos. As rugas, foram elas que prenderam a minha atenção. O corpo alongado pelas gestações, o cabelo injustiçado pela amamentação. E lá veio aquele sentimento novamente, uma espécie de expansão do território do envelhecer, como se mais pessoas entrassem na minha bolha desconfortável que criei ao me deparar com uma feição que já nada se assemelha com a Ana que um dia existiu.
Me senti desconfortável, evitei o clássico encontro de pessoas que um dia tiveram uma intimidade que não mais existe, mantive o sorriso distante, mas permaneci observando o envelhecimento de seu corpo, sentindo o prazer de não envelhecer sozinha e a culpa pela existência deste sentir.
Enquanto minha filha se encantava com a mágica de cortar pessoas ao meio, me perdi em pensamentos, investigando as similaridades do que havia sentido ao ver essas duas antigas colegas. Refleti que ambas mulheres eram, na época de nossa convivência, referência de beleza. Nós mulheres somos, de todas as formas, ensinadas a cuidar de nossa aparência como se a juventude fosse (ou devesse ser), eterna.
O pacto da juventude intacta é imposto a nós, as mulheres. Lutamos contra um sistema absurdamente opressor, mas a métrica continua a nos dominar, as rugas permanecem no rol de linhas indesejadas e, embora sejam elas as condutoras do caminho, a base de apoio para um caminhar mais consciente, continuam não sendo bem-vindas.
Ver o envelhecer de mulheres que um dia foram tidas como “perfeitas” teve um impacto em mim. Foi bom. Sou totalmente contra a ideia de que mulheres não possam envelhecer. Mas a mensagem que me foi passada a vida toda, de todas as formas possíveis, é de que, não, não podemos envelhecer.
Entendi. O prazer que tomou meu corpo foi na verdade, satisfação. Pela vida. Mulheres que não deixaram de viver em prol de uma aparência impossível de sustentar. Mulheres que se colocaram no mundo, mostrando seus corpos envelhecidos, marcados pelo que pode se chamar de vida sendo vivida.
Lembrei de uma passagem do livro O amante da Marguerite Duras: “Muito cedo na minha vida ficou tarde demais. Quando eu tinha dezoito anos já era tarde demais. Entre dezoito e vinte e cinco meu rosto tomou uma direção imprevista. Aos dezoito anos envelheci. Não sei se é assim com todos, nunca perguntei. Creio que alguém já me falou dessa investida do tempo que nos acomete às vezes na primeira juventude, nos anos mais festejados da vida. Esse envelhecimento foi brutal”.
Marguerite fala sobre o envelhecer de forma crua, e até exagerada, intencionalmente, ao meu ver, para que haja o impacto, o olhar descortinado sobre as mudanças ocorridas no externo que refletem na verdade, o florescer, que dentro nos habita. Sim, após o florescer, as flores murcham, secam e se desfazem. Assim também nos procederá. Mas até que a última pétala caia, estaremos vivas, com nossas rugas, nossos corpos envelhecidos e nossos sorrisos, cientes de que a vida é mais, muito mais, que a imagem refletida no espelho.
Com curiosidade e afeto,
Ana.
Adoro "O amante", vi o filme apenas, mas tem esse trecho no roteiro. Vivemos essa fase transitória que exige dos nossos corações; um lado ainda arrebatado pelas cobranças de imagem - eu mesma ainda me pego criticando meu corpo vez ou outra - e oo utro consciente de que somos mais que isso. Vai passar, creio eu.
"Mulheres que não deixaram de viver em prol de uma aparência impossível de sustentar." é desse grupo que quero fazer parte, sempre, impreterivelmente. para lembrar ✨