Amanhã,
Estava fazendo abdominais na academia, quando uma moça, daquelas que usa conjuntinho rosa, filma seu treino e tira foto fazendo biquinho para a rede social se aproximou e disse “para ficar com a barriga chapada é melhor fazer do jeito x”. Parei, olhei bem para ela, pensei nas tantas respostas possíveis (todas grosseiras, confesso) e sorri, aquele sorriso xoxo que a gente dá sem vontade, apenas para não correr o risco de a pessoa falar de novo pensando que você não ouviu.
Fui embora orgulhosa do autocontrole. Não é todo dia que a gente não manda a merda quem a gente gostaria de mandar a merda. É que o cansaço gerado por toda energia dispensada ao mandar aquela pessoa a merda e ter que lidar com o fato de que ninguém gosta de ser mandado a merda e a tendência é que ela mande você também para a merda e todo mundo fica lá mesmo, na merda, é grande. Por isso, às vezes, se fazer de sonsa, dar um sorriso sem graça e visivelmente falso, é mais vantajoso.
Porém isso é coisa inédita na minha vida. Não que eu mande todo mundo a merda, quem me dera, mas detesto um barraco. Cria da tradicional família brasileira, o clássico “o que todo mundo vai pensar” fez parte da minha existência desde que aprendi a não desagradar para não ser punida. Sempre tive vergonha de me expressar de forma “não educada” com pessoas conhecidas, com desconhecidas então, nem passava pela cabeça a ideia.
Só depois de adulta comecei a engatinhar nesse negócio de mandar a merda, estou ainda no nível iniciante, módulo I. O fato é que, embora não mande (quase) ninguém a merda, sempre fiquei dias remoendo situações em que gostaria de ter respondido a pessoa “a altura”. O clássico porque não mandei a pessoa a merda, porque não dei uma resposta melhor, porque não pedi para falar com o responsável do lugar etc etc. Uma canseira interna tão grande que a treta toda do todo mundo mandando todo mundo a merda seria, provavelmente, menos estressante.
Nesse dia, algo inédito aconteceu. Saí da academia deixando a resposta que não dei lá mesmo. Não levei para a casa a moça do conjuntinho rosa que faz biquinho para tirar foto. Deixei ela (e sua barriga chapada) lá, longe do meu universo particular, vulgo, a importância que dou, aqui dentro, para o que acontece ao meu redor. Pode parecer coisa pequena isso, mas senti no corpo o peso do “deixa pra lá”. É que a vida é por deveras tão complexa e cheia de bate e assopra, que se a gente conseguir, ao menos algumas vezes, decidir que determinada situação não vai se transformar em mais um bate, reside aí um suspiro bem bom de sentir.
Inclusive, tenho por mim que muito da importância que damos para o que acontece vem da nossa cultura (e sistema que a rege). Somos ensinados que não revidar é fraqueza, como se nosso valor fosse diminuído ao não se colocar como “maior” nas situações. Estar sempre pronta para ser “a melhor”. No fundo, o que tenho questionado ao mudar algumas atitudes, são os bastidores do que é ser “a melhor” e me deparo com a possibilidade de que, o que quero vai muito na contramão disso tudo e, mesmo que não saiba ainda nomear esse querer, ele pulsa aqui dentro, e aos poucos tem me transformado na casa que quero morar.
Vou ainda mais longe. Quantas situações/vivências deixamos de encerrar por medo de colocar um fim antes de estarmos “por cima” nelas? Trabalhos, relacionamentos amorosos, amizades etc. Esta ideia de que temos que sempre sair sambando na cara das pessoas e, enquanto o enredo não está na ponta da língua, nos mantemos em lugares que não queremos mais estar. Bancar finais ou mesmo o “deixa pra lá” acaba cobrando da gente baldes de coragem e muita perseverança (e remédios para dores musculares).
Deixar ir.
Deixar pra lá.
Tudo que não precisa ficar.
Na curta caminhada entre a academia e minha casa pensei nesse tanto de coisa e terminei no riso. A moça de conjuntinho rosa que faz biquinho para tirar foto me fazer pensar nisso tudo, achei poético. A vida tem sido bem abacaxi azedo nos últimos meses. Porém, tem dias que ele fica mais docinho e ando aprendendo a aproveitar seu sabor adocicado enquanto é possível.
Quem sabe, eu ainda guardo o sorriso xoxo e falo numa boa que não tenho a menor pretensão de ter uma barriga chapada, estou lá porque gosto de atividade física e porque quero ser a senhorinha que cozinha feijoada para família toda e levanta o panelão sozinha para colocar na mesa.
Quem sabe ainda, a moça do conjuntinho rosa que faz biquinho para tirar foto vá embora pensando nisso tudo e reflita sobre o valor do nosso corpo, do amor mais leve pelas nossas imperfeições, mas isso, já é assunto para outra carta.
Com curiosidade e afeto,
Ana
Estão abertas as inscrições para participar da leitura do livro de junho do Dialeto Materno. Iremos ler Filha da Nayara Noronha, para se inscrever basta me responder este e-mail ou enviar mensagem lá no Instagram do Dialeto. Este é o último livro do semestre, em breve divulgaremos a lista do segundo semestre que está uma lindeza só.
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Adoro a ideia transgressora de "quem disse que eu quero perfeição?" Estou aqui pelo prazer do exercício e pra levantar a panela de feijoada... adorei.
Obrigada pelas cartas, Ana.
:)