As Cartas para o amanhã são enviadas todas as quintas-feiras, de forma gratuita. Se você gosta da minha escrita e quer apoiar meu trabalho, pode assinar o plano pago que, além de ser um belo incentivo às minhas palavras, lhe dá o direito de participar de uma Oficina de escrita mensal promovida para os apoiadores. Mude seu plano e venha escrever comigo!
Amanhã,
Na minha pré-adolescência morava no sitio do meu avô paterno, cerca de 25km de distância da cidade onde estudava. Como qualquer pré-adolescente, meu maior medo era passar vergonha diante dos meus amigos, ser colocada em alguma situação vexatória da qual fosse lembrada pelo resto da minha vida escolar. Por esta razão, dias de chuva eram um verdadeiro terror para mim.
O ônibus escolar buscava eu e meus irmãos na entrada do sítio do meu avô, algo em torno de 1km de distância da minha casa. Porém, quando chovia, ele nos buscava em outro ponto, para não correr o risco de ficar atolado na lama. E esse ponto era longe, bem longe. Suava frio quando via que a chuva não cessava, a terra se molhando toda, passando do pó ao barro. Uma beleza infinita para as plantas, um terror sem precedentes para uma garota que queria chegar limpa e seca na escola.
A saga começava. Andar cerca de 5km, sem se molhar e sem se sujar toda de lama. No começo usávamos o método sugerido pelo meu irmão, amarrar sacolas de supermercado nos pés. Sempre acabava em desastre, um minúsculo furo, quase imperceptível, era o suficiente para causar um estrago nos sapatos daquelas jovens crianças. Chegávamos no ponto de ônibus com os pés com marcas profundas de nossa morada inóspita e lamacenta.
Tinha vergonha das minhas origens, não vou negar. Meus amigos, todos limpinhos e cheirosos enquanto eu andava quilômetros e lutava de todas as formas para chegar na escola minimamente apresentável. Sonhava morar na cidade, me identificar como alguém “normal”. Hoje, bastante solidária ao meu passado, gosto da peculiaridade que soa a minha vida até os quase 18 anos, ao passo que entendo aquela garota tentando sobreviver ao nada gentil mundo dos jovens que sofrem bullying por viver na biblioteca, gostar de conversar sobre os livros que lia e vez ou outra ter marcas de barro no corpo.
Mas esta carta não é sobre isso. É sobre uma personagem que surgiu nesta história.
Enquanto tentávamos aprimorar o método das sacolas de supermercado do meu irmão, colocando duas, e até três sacolas (o que continuava resultando em sapatos sujos), surgiu uma figura inusitada. Dona Maria. Uma senhorinha que morava bem ao lado do lugar que o ônibus nos buscava nos dias lamacentos. É provável que já tenha falado de Dona Maria por aqui, mas como acredito que a maioria das pessoas não vá se lembrar (assim como eu), vou fingir que se trata de uma personagem inédita em meus enredos.
Dona Maria era a clássica vovó simpática. Recepcionava seus netos com café e bolo e todo afeto possível de ofertar. Assistindo nossa saga com os sapatos e as roupas, nos chamou, dizendo que poderíamos ir descalços e lavar os pés no seu tanque de lavar roupas, que ficava na varanda dos fundos da casa, ao lado da porta da cozinha. (Aos não habituados à vida na zona rural, um “informe”, andar descalços era praticamente algo inato em nossas vidas, durante os anos que estudei nesta mesma fazenda, não me recordo de algum dia ter ido para escola calçando algum sapato, sério).
Lá fomos nós, calças levantadas até o joelho e tênis limpo na mochila. Chegamos no tanque de Dona Maria, que nos ofertou um pano para secar os pés. Devidamente calçados já nos preparávamos para ir ao ponto de ônibus, quando nos convidou para entrar e tomar um café. “Senta perto do fogão para esquentar esses ossos”, dizia rindo enquanto servia o café.
Perdi a conta de quantas vezes esta cena se repetiu. Só sei que foram muitas.
Hoje, penso em como teria sido o enredo da minha pré-adolescência se Dona Maria não tivesse se tornado a personagem principal. Não era fácil lidar com tudo aquilo e ela tinha a capacidade de tornar tudo menos sofrido. Penso também no meu papel hoje, quantas vezes me tornei ou tornarei uma personagem principal para alguém. Uma pessoa capaz de deixar a vida do outro melhor.
Esta mesma personagem teve um câncer de mama agressivo, o qual escondeu por um longo período dos filhos. Após a descoberta já tardia, fez o tratamento, se curou totalmente e anos depois morreu, como dizem por lá “de morte morrida” mesmo.
Pouco antes de morrer relatou à minha mãe que nunca se esqueceu de nós e nossos pés lamacentos. “Tinha tanto dó daqueles menino, naquela chuva, aquele barro todo” disse ela. Tenho por mim que Dona Maria nunca soube de seu protagonismo. Eu, tão jovem, não tive coragem, nem maturidade para lhe contar antes de sua partida. Que pena.
Protagonismos como de Dona Maria são sem dúvida uma das grandes fontes de inspiração da minha escrita. Personagens de carne e osso, que dentro de sua tamanha complexidade inspiram a ficção, trazem elementos capazes de dar vida a personagens principais como se assim existissem, bem a nossa frente.
Àquelas estradas de terra estarão sempre presentes na minha paisagem interna. Por vezes as palavras saem lamacentas, em outras, o asfalto já domina. Em todas, as personagens principais se mostram. E devo confessar, amo quando surgem de mansinho e me dizem “seus pés estão sujos de barro, vem, vou te ajudar a lavar”.
Com curiosidade e afeto,
Ana.
***
Leia também:
Delicia de texto, me fez retroceder a quando ia de chinelos até a metade do caminho para a escola e trocava com meu irmão o kichute preto. Ou quando usava sacos de lixo para proteger o tênis para o terceiro irmão usar na escola.
Que venha outras Dona Maria
Que delícia de texto, amiga! Adorei conhecer Dona Maria. Que possamos encontrar mais Donas Marias (e sê-las) pela vida afora!