Amanhã,
Os lugares as vezes não nos cabem. Ou nós não cabemos neles. Quantas vezes já se viu pisando em um terreno que lhe gerou tamanho incomodo que definitivamente não era só o fato de estar fora da sua zona de conforto? Vivi muitas dessas situações e atrelava a “culpa” pelo o que estava sentindo tão unicamente pela minha falta de conhecimento/habilidade para existir em ambientes que nunca me pertenceram.
Que bom que a vida passa e a possibilidade de lavar as lentes surge. Se colocar como “culpada” pelos desconfortos vividos é praticamente unânime no modelo de sociedade atual. Simplifica as explicações, desonera toda uma estrutura pautada em classes e centraliza no individuo a falha e joga no seu colo a resolução.
Gosto de lugares que tratam a arte como algo maior. É bonito ver uma bela galeria de arte, uma livraria pensada na diversidade da literatura e não no que mais vende. Mas esses lugares são estruturados para receber quem? Qual seu público frequentador? Poderia facilmente cair aqui no discurso meritocrático e dizer que são lugares frequentados por pessoas que apreciam a boa arte “independentemente da sua classe social”? Poderia. Mas estaria ignorando totalmente o fato de que, para apreciar coisas bonitas, é preciso saber que elas existem.
Fui criada para servir. Eu e ouso dizer, todos que nascem na classe trabalhadora. Uns mais, outros menos, mas todos com olhos voltados para os pés em muitos momentos despercebidos. O tal do incomodo no lugar que seu dinheiro é pouco. A sensação de que está sendo avaliada (muitas vezes vigiada) pelo simples fato de que sua aparência denuncia que você não pertence aquele lugar.
Dia desses fui a uma livraria. Linda. Fiquei encantada com tantos títulos interessantes que não tinha mais espaço nos braços para inserir algum livro ali. Havia separado todos os títulos que gostei para consultar o valor naquelas maquinas que lhe dizem o preço. Andei pela livraria toda tentando encontrar a tal da máquina e nada. Quando a proprietária me viu com aquela pilha nos braços me questionou se procurava algo. Mas não foi um questionamento qualquer, ela sabia o que procurava e sua pergunta não era uma ajuda, mas um lembrete. Eu estava no lugar errado.
A loja não tinha a tal máquina de consultar preço. Tinha que pedir para verificarem lá no caixa, onde tinha uma fila enorme para pagamento, ou seja, consultar preços ali era claramente um incomodo. Mas fui. Encolhida entre os livros e querendo ser transformada em uma mosca. No terceiro livro já havia esquecido o valor do primeiro, o atendente ia falando com uma rapidez de quem não via naquela ação qualquer propósito. Alguns livros infantis estavam no plástico, pedi se poderia olhar por dentro pois queria ver o estilo da ilustração. “Desejo” atendido diante de um silêncio constrangedor.
Comprei três livros. Com preços exorbitantes. Porque achei que seria uma boa compra? Não. Porque me senti na obrigação. Tinha dado “trabalho” para a loja e precisava recompensa-la. Mesmo o racional me dizendo que aquela ação era um absurdo, eu fiz. Servir é algo aprendido na vivência, mediante o lugar que ocupa na sociedade desde criança. Parece banal, um simples complexo de inferioridade, mas tudo tem conexão. Já dizia o ditado “o diabo mora nos detalhes”.
Pensei muito em escrever ou não sobre isso. Reflexões com a temática “classe social e o que elas dizem sobre nós” não costumam ser o ápice das leituras por aqui. Mas eu escrevo sobre o que me atravessa, e esses livros ficaram semanas me atravessando.
Muitas vezes fazemos coisas absurdamente incomodas, as quais são remetidas tão unicamente a falhas individuais, como se a socialização do meio em que vivemos não influenciasse nas nossas atitudes. O problema é você, dizem. Resolva.
Olhar para si é importante pra caramba, te faz se conhecer, entender onde o calo dói. Mas a gente vive em bando e a maioria das coisas são coletivas. Dizem respeito a estruturas feitas sob medida para lhe fazer comprar livros que não queria para agradar pessoas que não deveria.
Falar sobre isso me deixa mais confortável diante do desconforto. E tenho por mim que pode fazer o mesmo por quem me lê.
Com curiosidade e afeto,
Ana.
***
Se gostou desta carta, leia também:
Achei curiosa sua percepção porque embora eu já tenha vivido situações semelhantes, sempre com essa vergonha de estar incomodando, nunca pensei nisso como um marcador de classe social. Mas faz sentido.
Eu costumo associar mais com essa lógica cultural nossa de que servir as pessoas é fazer um favor, então você está incomodando. Mas essa lógica vem dessa relação classista mesmo, na qual ser servido é apenas pra quem pode.
Amei esse texto, eu sinto muito esse mal estar de estar em um "local que não é pra mim, ou seja, minha classe social"