Amanhã,
Já passava das 22hs quando as mensagens começaram a apitar uma atrás da outra, demonstrando que o assunto era longo. Estava no estágio pré-sono, não sonolenta o bastante para ignorar os ruídos que vinham do armário distante da cama. Não resisti, levantei e fui verificar a urgência.
Meu antigo vizinho, proprietário do apartamento abaixo do meu enviava vídeos e áudios da sua inquilina, demonstrando que algo de errado se passava com a tubulação do meu banheiro. O que inicialmente era uma pequena mancha no teto, havia se tornado um doméstico ciclone prestes a explodir. Um vazamento se fez presente e a mim, coube uma bela insônia, acompanhada das vozes na minha cabeça que anunciavam um transtorno inesperado e bastante inconveniente.
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Meu apelido na infância era manteiga derretida. Isso depois dos clássicos Ana banana e a irritante música “era um biquíni de bolinha amarelinha, tão pequenininho...”. Chora por tudo essa menina, era o que ouvia das pessoas ao meu redor. Incontrolável. Assim ocorriam meus vazamentos internos. Difícil disfarçar os descontentamentos da vida se nos momentos mais inoportunos, as águas se descontrolam, quebrando barreiras e mostrando sua força.
Na vida adulta, aprendi técnicas para segurar as águas. Desviar o foco dos locais de vazamento e pensar em outra coisa. Funcionou bem por muitos anos. Nas vezes em que parecia impossível a tarefa, conseguia ao menos tempo hábil para chegar no banheiro do trabalho e chorar fingindo um desarranjo intestinal.
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Herança genética ou ironia do destino, tive uma filha que assim como eu, sofre do mal de vazamento das águas. Desde as primeiras horas de vida, usava deste subterfúgio para comunicar seus incômodos. Já maior, continua firme e forte na arte de comunicar vazamentos internos e os locais de reparo necessário.
Sem qualquer possibilidade de intervenção, com sua chegada, meus vazamentos retomaram seu posto com vitalidade e presença. Tamanha foi sua ousadia que hoje, choro pelo simples fato de estar com vontade. Nem precisa de motivo aparente, apenas a necessidade de limpar os olhos, sentir a vida pulsando. Um agradecimento por ter em meu corpo água em abundância. Um esbanjamento de quem sente profundo e não mais se envergonha disto.
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Na manhã seguinte, encontrei na internet o telefone de uma pessoa especializada em concertos em geral. Parte hidráulica estava na lista de serviços inclusos. Arrisquei uma ligação, que era para comunicar a urgência e, ao atender já prontamente entrou junto comigo em um processo investigativo do que poderia estar causando a fuga das águas.
Conversa vai, observação do local vem. Chegamos a um veredito juntos. Cano do ralo maior desgastado, espaço perfeito para um desvio premeditado de líquidos animados com a mudança de rota, somado a deterioração do rejunte no box, perfeito para fugas discretas. Apresentadas as soluções, o serviço é efetuado e ao final o banheiro fica interditado para o desague habitual. Nada que banhos em casa alheia por alguns dias não resolva.
O ex-vizinho ficou impressionado com a agilidade da solução. Mal sabe ele, que de vazamento, a gente entende. E muito bem.
Com curiosidade e afeto,
Ana
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Estão abertas as inscrições para o Nós - Laboratório de Escrita de março. Neste mês vamos explorar as palavras, brincar com seus sentidos, usar de técnicas literárias que expandam o texto, levando-o para novos lugares.
Para se inscrever basta me escrever no e-mail anammargonato@gmail.com.
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Vazemos, minha amiga!
Beijo
Também sou assim. Antes eu sentia muita vergonha desses choros, mas entendi que é melhor que elas saiam do que me afoguem por dentro.
Um beijo, Ana.