Eu juro que tento #73
Rodovias, estradas de terra e silêncio absoluto.
Amanhã,
Eu juro que tento não falar o tempo todo de maternidade. Tento mesmo. Não é um assunto que me apetece tanto quanto parece. Parte porque é cansativo demais falar de algo tão marginalizado e parte porque quero falar sobre outras temáticas que vão muito além da minha versão mãe.
Só que essa parte mãe toma um espaço. Bem grande. Ocupa lugares que não necessariamente lhe pertence, mas se conecta com quase tudo da minha vida. Ser mãe mudou o caminho e talvez esta tenha sido a parte mais difícil de enxergar. Admitir que a maternidade, para o bem ou para o mal, traçou novas rotas que não controlo. No máximo escolho que sapato calçar.
Estou terminando um curso de escrita e, em uma das aulas falou-se muito de hábitos de escrita, rotina, importância do hábito etc. Ao final, tinha o link de uma reportagem que indicava como muitos escritores famosos costumam se organizar para escrever. Lá fui eu ver possíveis inspirações para o meu trabalho.
A maciça maioria escreve (ou escrevia porque já partiu dessa vida) cedinho, indo até quase o final da manhã, uma parada para vida fora da escrita, que inclui atividade física, visita aos amigos, cafés etc e ao final do dia retornando ao trabalho. Fui lendo, um, dois, três, vigésimo terceiro, praticamente a mesma rotina. Não sabia se chorava ou se ria de nervoso.
Praticamente nenhuma dica cabia na minha vida. Escrever bem cedinho? Eu saio para correr para não ouvir “mãe me conta uma história” às 6hs da manhã (e também porque não conseguiria correr em outro horário sem ser este). Escrever pela manhã nesta casa é, com sorte, ao som de algum desenho animado ao fundo, com pausas para lanchinhos insaciáveis e xixis eternos.
Cada declaração que lia sentenciava. Esse não tem filho. Aquela ali certamente que não. Silêncio absoluto era citado por muitos. Mais sentenças de que, ali naquela vida, não haviam crianças. Mesmo quem tem recursos financeiros para pagar pelo cuidado de suas crianças, dificilmente haverá silêncio em sua casa às 07hs da manhã.
Um sentimento de inadequação foi me consumindo. Seria o caminho da escrita uma estrada onde se anda só? Estava quase parando de ler quando surgiu um relato de um escritor dizendo que fazia a rotina mais indicada, escrita pela manhã etc etc. Até que seu filho nasceu. “Depois disso, tudo mudou. Escrever pela manhã? Com um bebê em casa se conseguir escrever qualquer coisa em qualquer horário é motivo de comemoração”.
Senti meus pés firmando novamente o chão que hoje piso. Talvez o sapato escolhido para a jornada não tenha sido dos piores. Não há mágica, com criança ou sem, escrever é desafiador e requer muito de quem decide passar suas palavras adiante. Saber que as estradas divergem é importante. Tem gente que pega rodovia. Quem tem filhos, certamente escolheu estrada de terra.
O encantamento nisso tudo é que, independentemente da velocidade ou da estrada, o destino não está dado. Muito menos se conhece o final do caminho. É provável que a estrada de terra seja bem mais desafiadora, os passos sejam mais lentos e a poeira na cara me faça não enxergar muita coisa. É provável. Mas eu gosto do lugar onde piso. Mesmo diante de pedregulhos ambivalentes. Eu gosto do lugar que piso. É dali que tiro as palavras que jogo ao vento.
Cuidado aos pega-las, tem poeira por todo lado.
Com curiosidade e afeto,
Ana.
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Última semana para se inscrever no Dialeto Materno na modalidade Semestral.
Ana! Li a resposta que você me mandou e corri para te ler. Nossa, perfeito. Dá um nervoso ver essas rotinas perfeitas, quase estéreis. E agora fiquei curiosa em saber quem é o escritor que falou da mudança da rotina com a chegada do filho ;)
Ana,
Eu fico pensando o quanto os caminhos são mais plurais do que a gente pensa.
Eu não sou ninguém na fila do pão, eu sei. Apesar de valorizar muito rotinas eu nunca me identifiquei com nenhuma dessas estruturas dos grandes escritores pra estampar em folha de jornal. Eu quase nunca escrevo de manhã. Também não escrevo todo dia. Eu gosto do silêncio, não ouço nem música se não é o momento de ouvir música, mas a própria natureza é bastante barulhenta. Eu sei que são situações diferentes - eu não sou mãe e talvez pareça tudo mais escolha aqui desse lado - mas de fato, eu não acho que seja qualquer dessas coisas que faça a gente mais ou menos escritora.
As vezes eu escrevo no meio da tarde, como estou fazendo agora. As vezes é de manhã, mas com certeza vai ser depois do café, de cuidar dos gatos, e da yoga. Tem dia que me vem uma frase, ou uma ideia que eu acho que a partir daí rende um ensaio, e eu anoto no bloco de notas do celular (assim mesmo, sem método nem aplicativo, porque é o que funciona pra mim). Tem dia que eu esqueço de anotar também. Mas eu tô sempre prestando atenção nas ideias, dando um jeito que elas se prolonguem em notas e conversas, e isso sempre foi suficiente pra que eu continuasse escrevendo, publicando e vivendo disso.
Muitas vezes eu sinto que tenho mesmo outras prioridades. Eu quero comer bem, ter uma vida agradável, estar disponível pros outros muito mais do que escrever qualquer coisa. Tenho pra mim que a arte sem estar incorporada à vida eu não sei se vale grande coisa. Talvez por isso mesmo eu jamais serei uma grande escritora que vai estampar sua rotina estranha no jornal, mas também não gostaria disso. Eu gosto das miudezas, de ter tempo, de fazer porque quero, e saber que justamente porque o meu querer é tão respeitoso comigo mesma que ele sempre encontra a porta aberta pra voltar. É assim que ele sempre está aqui, e isso me basta.
Um beijo grande <3