Amanhã,
Uma senhora analfabeta, residente em uma casa de barro, conhecida como tapera. Andava descalça, com um vestido de chita todo desbotado na região da barriga. Plantava feijão todo ano e, se colhesse 3 sacas, doava metade aos vizinhos que nem isso tinham para comer.
Esta era minha avó materna aos olhos da minha mãe e aos meus, depois de ouvir tantas vezes as histórias de sua generosidade que, mesmo diante de uma vida extremamente precária, doava grande parte do pouco que tinha.
Uma mulher que trabalha de sol a sol, sempre, desde a infância, fase em que teve que deixar os estudos para trabalhar. Na adolescência, trabalho voluntário no pouco de tempo que sobrava. Algumas mulheres da família seguiram vida religiosa, o servir na forma “mais pura”. Ela, se casou e entre trabalho no campo, casa, filhos, preocupava-se em repartir, ajudar, mesmo quem não pedia ajuda.
Esta é minha mãe. Hoje já com os filhos criados, dedica ainda mais tempo em ajudar as pessoas, repartir, dar ouvidos aqueles que vivem solitários. Cresci entre “leva isso aqui pra sua tia” e “seja generosa pois esta é uma virtude que todos devemos ter”.
Uma mulher que por vezes compra para as pessoas presentes que jamais comprou para si. Se preocupa com todos os aniversários que é capaz de lembrar e mesmo que seja a coisa mais simples do mundo, faz questão de ofertar. Até mesmo para pessoas que nem se lembram do seu, quando a data chega.
Essa sou eu.
A neta da senhora que plantava feijão todo ano e distribuía entre os vizinhos a metade.
Filha da mulher que ofertava as tias que moravam perto, sempre a melhor parte do animal, quando sacrificado para se tornar comida.
A mãe de uma amiguinha da minha filha me entregou uma sacola, disse serem todas coisas que minha filha deu de presente a filha dela. Diante do que ela considerou exagero, decidiu devolver, pois a minha criança poderia não estar entendendo que ao presentear a outra, ficaria sem aquilo. Ela sabia. Sabe. Presenteia as amigas com anéis de papel que ela mesma faz, desenhos, presilhas, lápis de cor etc etc.
É provável que a minha versão de 2022 tivesse se sentido orgulhosa ao ouvir a outra mãe dizer “nunca vi uma criança tão generosa como a sua filha”. Mas a minha versão atual, se encolheu. Todos os passos dados por mim, bem como por aquelas que andaram esse mesmo chão antes da minha chegada passaram feito um filme na minha cabeça.
Uma linhagem de mulheres que estão sempre se preocupando com o outro. Numa espécie de capacidade inata, uma vez que aos olhos da sociedade, uma mulher que se doa é natural, esperado. Por vezes ganha algumas estrelinhas. Por vezes.
Seguir o caminho contrário. Não. Mulher que se coloca como prioridade é egoísta. “Está infeliz com a própria vida e por isso atrapalha a do outro”. Diz a sociedade, quando esta mulher diz um não.
Aquele não nunca dito. Aquele não nunca permitido. A nós mulheres.
Sou o que minha história fez de mim. Filha, neta, bisneta etc etc de mulheres que se doaram, se doam e continuam passando em frente a necessidade de se doar. Vejo uma beleza gigante na generosidade. A mãe de um amigo sempre diz “é melhor ajudar do que ser ajudado”.
Concordo. Ao passo que enxergo a linha tênue entre ajudar e se colocar em lugares que não deveria estar. Em lugares, que nenhum homem costuma estar.
A generosidade não passa por cima de você. A estrutura de sociedade que chama servidão feminina de generosidade, essa sim, passa como rolo compressor levando o pouco de autoestima construída a duras penas.
Ser generosa é uma característica que carrego como herança e sim, me orgulho de tê-la em minha linhagem materna. Me priorizar e encontrar a linha tênue entre a generosidade e os nãos necessários, não é algo que herdei, mas é algo que pretendo ofertar como herança para minha filha.
Com curiosidade e afeto,
Ana
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Seu texto me lembrou que eu tinha tanto orgulho de ser generosa e cuidar dos outros. Falava disso com a boca cheia. Eu sou generosa e gentil. Eu cuido dos outros. E aí me dei conta que eu era generosa e gentil e cuidadosa porque eu morria de medo que os outros fossem embora. E doeu porque quebrou alguma coisa aqui dentro. Levou um tempo pra que eu conseguisse ser generosa e gentil e cuidadosa porque fazia sentido pra mim, e não por medo de que os outros fossem embora.
Acho a generosidade uma das características mais incríveis que alguém pode carregar, só é preciso distingui-la de um desejo genuíno e puro de dar do medo de perder ou de ficar sem amor. É difícil; é muita separação de imposições históricas do patriarcado. Mas adorei como esse episódio com tua filha também te fez refletir sobre tudo isso :)