Você tem cinco minutos #78
"Tenha uma ótima semana moço"
Amanhã,
Estava chorando no carro. Sim, chorar no carro após deixar a criança na escola é uma das proezas da vida adulta. Chora, dirige e planeja o jantar. Tudo ao mesmo tempo. Não há espaço disponível somente para o choro, há de dividi-lo com a constante funcionalidade da vida humana.
Fiz uma parada na loja de informática pegar o cartucho da impressora que resolveu pifar bem na semana que eu mais precisava dele. Estacionei o carro, sequei as lágrimas e adentrei no recinto. Olá. Olá. Pega o cartucho. - Já está pago né? Sim. Saio em direção a porta, olho para trás, abro um belo sorriso e digo "Obrigada moço, tenha uma ótima semana".
Entrei no carro e sem nem pensar gritei WTF MAN!! Sim, além de chorar está liberado falar sozinha também (desde que não gaste muito tempo ou seja concomitantemente aliado a alguma tarefa). Como é que alguém está chorando, para, entra em um estabelecimento e minutos depois sorri e deseja uma ótima semana como se estivesse vivendo mais um dia na felizolândia?
Fato que ninguém é obrigado a ficar sabendo dos seus perrengues, enxugar suas lágrimas. Mas de choro de molhar toalha para "tenha uma ótima semana" com sorriso na cara existe aí uma distância considerável que só há uma explicação. A gente engole o choro para caber no mundo inventado por pessoas que choram escondidas e fingem que não conhecem o gosto das lágrimas. Só pode.
Sorri porque é chato gente triste. Diz coisas simpáticas para gostarem de você. Ouça despropósitos e releve, não vai ser a chata né? Espreme. Espreme. Até caber dentro da lata carro e te darem cinco minutos para chorar. Enquanto dirige e trabalha mentalmente alguma tarefa por fazer. Adiante. A vida não pode parar.
Nem precisa ter diploma em algum curso que estude saúde mental das pessoas para concluir que estamos tomando rumos catastróficos para nossa própria existência. Não à toa, o que mais tenho visto e ouvido das pessoas, seja presencialmente ou por este mundão da internet é que estão todos exaustos, cansados em tal nível que parece uma pane, um defeito a ser concertado. De preferência em cinco minutos. Enquanto faz alguma outra coisa “útil”.
Esse papo de cansaço de novo? Sim, eu sei. Está cansativo ficar falando e ouvindo falar sobre cansaço. Meio batido já. Acontece que continuamos cansados. Sem qualquer possibilidade de escoamento. Nada que ultrapasse os cinco minutos divididos com algo mais na lata que nos apertamos para caber. Ouso presumir que isto não será o suficiente. Estamos muito longe de deixar o cansaço lá no passado. Talvez falar sobre isso seja agora o espaço mais fidedigno que podemos ter e isso me parece um bom começo.
Poderia ter entrado na loja chorando? Não sei. Talvez fosse uma possibilidade. Embora dificilmente isto fosse me ajudar em algo. Ser gentil com as pessoas me faz bem, aliás, acho que isso é geral, não? Mas sinto que limites internos, os quais envolvem respeito e acolhimento, são ultrapassados quando deixamos de sentir para caber. Performamos um papel, não importa o momento. Não importa as consequências dentro de nós.
Como sempre, ando sem respostas. Perguntas me levam mais longe. Me agarro a elas para entender melhor a vida, dialogar com os incômodos que surgem e me direcionam enquanto busco responde-las. Longe de encontrar um final feliz, ao menos não um que seja factível para os dias atuais. Determino então, uma resolução.
Chorarei o que tiver que chorar. Sem dividir minhas lágrimas com qualquer outra tarefa ou necessidade alheia. Mas seja breve, você tem cinco minutos.
Com curiosidade e afeto,
Ana.
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eita, bateu fundo.
eu não aguento mais ouvir ou falar a palavra burnout (ou piripaque?), mas tem como não falar sobre isso? ele some se não falar sobre ele?
estamos exaustas.
"Chora, dirige e planeja o jantar." E assim seguimos a vida.
me identifiquei demais com esse texto. acredito que todo adulto acaba tendo de chorar enquanto faz algo "produtivo", mas o mais difícil ainda pra nós é ter de chorar enquanto lidamos com as emoções das crianças.