Amanhã,
Desde o dia que minha filha nasceu, mais de cinco anos atrás, realizo todos os cuidados necessários para que ela cresça saudável, física e emocionalmente. Há mais de oito anos, cuido todos os dias do bem-estar da Beheca, uma cachorrinha muito amorosa que me escolheu na rua. Há sete da Lilika, outra pequena que se juntou a este lar. Há seis da Pipoca, que chegou aqui muito magoada com os maus tratos que sofreu e as dores crônicas de uma doença que nunca havia sido tratada.
Poderia ficar horas falando sobre o cuidar, porém quero falar sobre o valor que damos para este cuidar e para tantas outras coisas. Ou melhor, o valor que não damos. E não, não é individual, mas sistêmico. O capital determina o que tem valor: O que dá lucro. E este valor é determinado pela importância daquilo PARA O CAPITAL. Por isso cuidadores e professores ganham tão pouco, o que eles fazem não tem valor para o sistema porque a “mercadoria” que eles administram não tem valor, idosos e crianças não estão na roda, afinal.
Converso muito sobre este tema, por vezes até me consome. É que eu sou artista e artista, se não transformar tudo em mercadoria, não é um bom “profissional”. A escrita já endereçada para o quadrado “do que vende”. Uma arte pensada em seu atrativo e não no propósito de quem a cria. E não estou aqui para falar de quem adequa sua arte nos moldes do sistema ok, não devemos criticar pessoas, mas estruturas que levam as pessoas a fazerem determinadas coisas.
Este texto, por exemplo, não é vendível, e costumo ter inclusive uma queda considerável na taxa de leitura quando falo sobre questões políticas que norteiam a minha, a sua vida, em todos os aspectos. Eu trabalho com literatura, bater de frente com o sistema enquanto tenho boletos por pagar é uma decisão difícil. Criar uma arte realmente significativa para mim e para o outro sem precisar me preocupar com o retorno financeiro, ao passo que os boletos exigem que haja esta preocupação é uma dança difícil de dançar.
Um sobe e desde constante. Como criar valor para algo que somos ensinados desde criança que não tem valor? É uma doutrinação, sim! É normalizado pagarmos cinquenta reais em uma pizza que irá acabar em menos de 15 minutos e horas depois estaremos com fome novamente, mas pagar o mesmo valor em um livro que poderá ser passado para muitas gerações futuras é visto como algo absurdamente caro.
E não sou eu ou você que cria esses parâmetros. Somos massinhas de modelar do sistema, e pensamos de uma forma pré-moldada, muito mais do que conseguimos enxergar. Já dizia o ditado “o diabo mora nos detalhes”, de pouquinho em pouquinho formamos nossas “próprias opiniões” pautadas nas nossas vivências que, advinha, é ditada pela posição social que ocupamos, a cor da nossa pele, os direitos que temos acesso etc etc.
Qual o valor para você das coisas que não tem valor para o sistema?
Esses dias vi os stories da minha amiga Carla Soares, falando sobre o processo artesanal de uma bolsa que havia feito e o quão lhe entristece saber que todo o trabalho envolvido não tem valor na sociedade que vivemos. E não tem. Trabalho artesanal, seja manual ou intelectual, como de um escritor, é tido como supérfluo, sem necessidade, um luxo.
Analisando friamente poderia dizer que faz sentido, afinal, boa parte da sociedade está lutando para sobreviver sem a menor possibilidade de pagar pela arte de alguém. E pior, sem a possibilidade de refletir sobre isso, de ter acesso a arte e tudo que ela proporciona. O tempo gasto para criar uma bolsa do zero, com as mãos, com uma aparência pensada para ser algo belo, assim como a elaboração de um livro, desde a ideia inicial, até sua frase final, tudo isso não cabe como reflexão na cabeça das pessoas que precisam se preocupar em se manter vivas e alimentadas.
Vejo que o valor dado pelo sistema a tudo que não “é útil” vai muito além do lucro. Vem do fetiche de quem dita o que é arte, encarece o que era para ser acessível a todos. Cria a ideia de que arte é só aquilo que você não tem dinheiro para comprar. Centraliza toda manifestação cultural em lugares inacessíveis para a grande maioria. Faz artistas acreditarem que sua arte não importa porque não tem valor monetário perante a sociedade.
Tudo isso nos leva ao distanciamento da importância da arte para nós enquanto grupo social. Arte não tem preço. Ela é precificada porque vivemos no capitalismo e não há outra forma de se viver dentro dele que não seja com dinheiro. Artistas não deveriam ter que criar sua arte pensando no dinheiro que vão ganhar com ela. Isso inclusive mata a criatividade de muitos. Muitos mesmo.
Eu não sei porque decidi falar sobre isso, se fosse pensar no dinheiro, nem falaria. Porém, tenho feito uns caminhos inversos na vida, fugido dos gurus que dizem saber como ganhar cem mil reais em uma semana, daqueles que dizem que eu tenho que um monte de coisa. Fugindo de tudo que não faz mais sentido para mim. Nem sempre consigo me manter na fuga, por vezes os boletos me interceptam e lá estou eu na roda, mesmo que tentando com todas as forças, sair dela.
Também não tenho respostas, exceto o fato de que acredito genuinamente no poder do diálogo e na força que tem as sementes plantadas a partir deles. Sei que uma andorinha só não faz verão, mas imagina se as andorinhas todas começarem a se juntar e falar mais sobre o valor que dão para as coisas que não tem valor para o sistema, se começassem a expandir essa ideia, valorizar o que está ao alcance delas.
Não sei, talvez fosse possível começar a fazer algum verão.
Com curiosidade e afeto,
Ana.
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Ótima reflexão. Por isso é a arte (no sentido subjetivo da palavra) é tão importante, pra mostrar que existe outra lógica, outra filosofia de vida, que não é pautada pela objetificação e comércio... O problema é que ela própria muitas vezes é objetificada para continuar existindo, pois só assim a sociedade se importa com ela. Por isso defender as coisas que "não tem valor" é tão importante, é um ato de resistência.
Que texto mais lindo, e necessário.
O filósofo marxista Henri Lefebvre fala muito sobre o devir, a importância do devanear, do sonhar com um mundo melhor, isso já é começar a construi-lo.
Beijos,
Miriam